segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Ecos de Sarajevo



Ruas de Sarajevo

Sarajevo é uma cidade estranha, cheia de ecos, em que cada um escolhe os ecos que quer ouvir. Cidade multifacetada, parece estar suspensa numa indefinição entre o passado e a modernidade, entre a tradição e o progresso. Cruzamento cultural, encruzilhada entre o oriente e o ocidente, densa de histórias.

A bela Câmara Municipal de Sarajevo

A presença mais forte é a muçulmana. Passamos por inúmeras mesquitas, umas atuais, outras que recuam até ao século XVI. 

Uma mesquita moderna

Há banhos turcos e até uma madrassa (escola corânica) ainda em funcionamento. Tudo no meio do labirinto de ruelas e becos do bairro turco, ainda tão vivo e cheio de movimento.

Uma rua do Bairro Turco

O velho fontanário é o centro da vida social de Sarajevo. Aí se juntam os jovens, de roupas ocidentais, mas também muitos outros de indumentárias muçulmanas, incluindo muitas mulheres tapadas da cabeça aos pés. De vez em quando, sai de dentro do traje totalmente negro uma mão cheia de anéis, com uma moderníssima máquina fotográfica ou manejando um iPhone. Homens à frente, mulheres atrás. Não consigo habituar-me...

O velho fontanário - Baščaršija

Os donos do nosso hotel também são muçulmanos. São ambos simpáticos, mas é ele quem faz conversa. Vai-nos dizendo que cerca de 70% da cidade é muçulmana e partilha histórias do cerco de Sarajevo, durante a Guerra da Bósnia, nos anos 90. Mostra-nos o mercado próximo, enquanto conta que ali morreram muitas pessoas, com o lançamento de granadas para o meio dos que faziam as suas compras diárias.

Partes do Complexo Bei Gazi-Husrev 

A entrada da Sala de Orações do Complexo Bei Gazi-Husrev 

A guerra ainda está muito presente. No centro da cidade, há exposições e filmes intitulados Sarajevo, cidade-mártir, que relembram o cerco de três anos imposto à cidade. No chão, somos de vez em quando surpreendidos por uma mancha rubra, que marca o lugar onde caiu uma bomba.

Aqui caiu uma bomba...

Vem-me à memória o Diário de Zlata, uma rapariguinha de Sarajevo que, tal como Anne Franck, partilha no seu diário  experiência dos dias da guerra. A certa altura, ela desabafa: "Entre os meus colegas, os meus amigos, a nossa família, há sérvios, croatas, muçulmanos. É um grupo muito misturado, e eu nunca soube quem era sérvio, quem era croata, quem era muçulmano. Agora, a política meteu o nariz e pôs um S nos sérvios, um M nos muçulmanos e um C nos croatas. E para escrever essas letras, usou o pior, o mais negro dos lápis. O lápis da guerra, que só escreve infelicidade e morte." 

A catedral Ortodoxa...

A memória desses dias de convivência tolerante ainda está bem evidente na proximidade entre os templos das várias religiões, no centro da cidade. A catedral católica fica a algumas ruas de distância da catedral ortodoxa, da principal mesquita e da sinagoga judaica.


... e a Sinagoga

A velha Ponte Latina traz-nos ecos de violências mais antigas. Aqui foi assassinado o arquiduque da Austria-Hungria em junho de 1914, dando início à 1.ª Guerra Mundial.

A Ponte Latina, onde começou a 1.ª Guerra Mundial

Apesar dessas feridas, Sarajevo continua a ser uma cidade muito agradável, de belos edifícios e espaços apetecíveis. Hoje, volta-se inequivocamente para a modernidade. Quando ali estivemos, decorria o Festival de Cinema e toda a cidade se vestia de festa.

A passadeira vermelha para o Festival de Cinema

Um bus-bar


Os ecos das feridas passadas continuam lá, mas só os ouvimos quando queremos.

O rio Bosna e o Monte Igman, nos arredores de Sarajevo


domingo, 17 de janeiro de 2016

Višegrad, uma ponte e um livro


A velha ponte sobre o rio Drina

Quando comecei a interessar-me pelos Balcãs, um amigo que conhecia bem a região ofereceu-me um livro e disse-me: "Se leres este livro, ficarás a compreender um pouco melhor os Balcãs". O livro era A Ponte sobre o Drina de Ivo Andrić. Li-o numas férias. Conta a história de uma ponte, mandada construir pelo vizir Mehmed Pasha Sokolović, no século XVI

A ponte vista do hotel

Eram tempos difíceis para a região: o Império Otomano dominava e exigia um tributo anual de sangue, rapazinhos de tenra idade que iriam ser criados na corte do sultão. O vizir foi um desses rapazinhos. A maioria tornaram-se soldados do exército otomano, mas ele chegou a grão-vizir e nunca esqueceu aquele rio, nem a personagem sinistra do barqueiro que fazia o transporte entre as duas margens.

As margens do rio Drina

O livro acompanha a ponte, desde a sua construção até às vésperas da 1.ª Guerra Mundial, já no século XX. Dito de outra forma, a ponte é a sua personagem principal. Ela liga as margens do rio, liga as populações, entreliga-se com as suas misérias e com as suas pequenas vitórias.

Turistas tiram selfies no meio da ponte

Ivo Andrić cruza lendas e contos tradicionais com peripécias verídicas. Através dele, vamos conhecendo as pessoas que passam a ponte e que vão fazendo crescer a cidade nas suas margens, Višegrad, sejam camponeses cristãos ou comerciantes turcos ou judeus. Perto da fronteira entre a Sérvia e a Bósnia, esta é uma zona de transição entre o ocidente e o oriente, entre o cristianismo e o Islão, e a ponte é o seu símbolo. As comunidades confrontam-se mas, nas horas de aflição, os seus líderes juntam esforços.

A entrada de Andrićgrad, recriando uma fortaleza turca

Assistimos à chegada dos austríacos e às primeiras lutas pela independência. Presenciamos casamentos e execuções. Sentamo-nos com os negociantes turcos que fumam os seus cachimbos no banco de pedra que marca o meio da ponte. Seguimos as suas histórias de amor e de violência. E, quando chegamos à última página do livro, é como se nos estivessemos a despedir de membros de uma família que fomos espreitando pelo buraco da fechadura e acompanhando durante gerações.

A rua principal de Andrićgrad

O autor deste livro, Ivo Andrić, foi um escritor notável e acarinhado na antiga Jugoslávia, tendo até ganho um Prémio Nobel da Literatura. A ascensão dos nacionalismos fê-lo cair em desgraça, conotado com o regime anterior mas, felizmente, a sua qualidade voltou a impô-lo como uma figura incontornável da literatura balcânica.

O cinema do novo complexo cultural

Junto à velha ponte sobre o rio Drina, ergue-se agora um complexo cultural e turístico que presta homenagem ao livro e ao seu autor. Chama-se Andrićgrad e foi projetado pelo conhecido realizador  sérvio Emir Kusturica. Talvez por isso, tem um ar cinematográfico e um pouco irreal! Mas é um espaço muito interessante, que tenta recriar os locais emblemáticos do livro e, ao fim e ao cabo, da própria cidade cujo crescimento o livro retrata.


Os espaços de bares e esplanadas recriam o velho bairro turco

Ainda não está terminada, mas a cidade de Andrić já inclui praças e ruas com bares, restaurantes, um cinema e uma igreja. Previa-se que durante este ano de 2016 abrisse uma sala de espetáculos e uma escola de artes. 

O espaço da nova escola de artes

O imperador Pedro II frente à Igreja Ortadoxa de Andrićgrad

O Hotel já lá está! Aí ficamos por uma noite, sentindo-nos parte da trama desta ponte sobre o rio Drina.

Estátua de homenagem a Ivo Andrić na praça central de Andrićgrad

sábado, 2 de janeiro de 2016

Niš - A cidade do imperador


Vestígios turcos em Niš

O imperador Constantino é a personagem mais notável nascida na cidade de Niš, hoje uma cidade importante do sul da Sérvia, na altura uma região central do Império Romano.
É interessante percebermos que os Balcãs, na época imperial, estavam no centro do império, perto da Itália, de tal forma que hoje há uma Rota dos Imperadores, que liga vários pontos de interesse histórico com eles relacionados.


Estátua comemorativa do Édito de Milão

Em Niš, já não sobra nada do imperador Constantino, a não ser a memória. Em 2013, comemoraram-se os 1700 anos do Édito de Milão, em que Constantino permite a liberdade de culto aos cristãos dentro do Império Romano, e esse importante acontecimento foi comemorado na sua terra natal com pompa e circunstância. Foi construída uma catedral dedicada a Constantino e a sua mãe, Santa Helena, e foi erigida uma interessante estátua junto ao rio Nišava.


Catedral de Constantino e Santa Helena

Nesta região, sobrepõem-se memórias. A mais forte é, sem dúvida, a dos tempos dos turcos otomanos. Em Niš, erguia-se uma imponente fortaleza turca. 

Entrada da fortaleza turca

Hoje, as suas muralhas, ainda bem conservadas, abrigam um parque e uma agradável zona de esplanadas, assim como um espaço para concertos ao ar livre. 


Esplanadas dentro da fortaleza

Na parte mais antiga da cidade, a rua central do bairro turco continua a ser a zona mais animada. Há restaurantes e bares, alguns dos quais recriam os espaços muçulmanos da época otomana. É aí que paramos para jantar, uns belos petiscos à maneira sérvia.


No bairro turco

Mas há também memórias sombrias desse tempo. No século XIX, os sérvios tentavam conquistar a cidade aos turcos, mas foram derrotados. A vingança foi cruel. As cabeças dos sérvios mortos na batalha foram cortadas e encastoadas numa torre, para servirem de exemplo. O escritor francês Lamartine foi o primeiro a descrever a torre e a dar testemunho desse massacre na Europa Ocidental. Calculo o susto de Lamartine, quando se abrigou do sol junto a uma torre que lhe parecia brilhar de mármores e madrepérolas e descobriu que, afinal, eram centenas de caveiras descarnadas!
A torre ainda lá está, preservada dentro de uma capela que é, ao mesmo tempo, um espaço museológico e de memória.


A capela que abriga a Torre das Caveiras
(dentro não se pode fotografar)

Outra memória cruel ainda presente na cidade é a do domínio nazi. Em 1941, os nazis invadem e ocupam a então chamada Jugoslávia. Quando ocupam Niš, transformam umas antigas instalações militares num campo de trânsito e concentração. Dão-lhe o nome da estação de caminhos de ferro próxima e assim surge o campo de concentração Cruz Vermelha. Os primeiros a serem detidos são os líderes da cidade, políticos, padres, professores, maçons... É mais fácil dominar uma população quando lhe são retiradas as referências...


O pátio do Campo de Concentração Cruz Vermelha

Este campo de concentração é muito chocante. Somos imediatamente transportados para aquela realidade triste e sombria. Quando se visita Dachau ou Auschewitz, por exemplo, encontramos todo o horror do universo concentracionário nazi, mas o espaço está limpo, organizado de forma informativa, o que nos permite ganhar algum distanciamento. Aqui em Niš não se consegue manter essa distância. O campo está exatamente como era. As camaratas de paredes escuras, com o chão coberto de palha, onde os prisioneiros eram amontoados.


Dentro da camarata

O terreiro da chamada, rodeado por um muro com dezenas de postos para as metralhadoras. Os edifícios da cozinha e das instalações dos oficiais, com as suas desbotadas inscrições em alemão. Tudo tem um ar cinzento e abandonado, que o torna ainda mais sombrio.


O edifício dos guardas (hoje, a portaria)

Alguns cartazes mostram-nos o temível chefe do campo, assim como a história da única fuga bem sucedida.


Um cartaz conta a história da fuga de 12 de fevereiro de 1942

Há apenas um memorial, já fora dos portões de acesso, erigido pela União Soviética em memória dos soldados do Exército Vermelho, os últimos a serem ali aprisionados.


Memorial aos soldados do Exército Vermelho

Ainda subimos ao topo da colina de Bubanj, onde os nazis fizeram alguns dos seus assassinatos em massa. Hoje é um espaço arborizado, coroado por um conjunto impressionante de três punhos, em tamanho gigante, que evoca a resistência ao nazismo.


A colina de Bubanj

Niš concilia bem todas estas memórias, prazenteiras ou sombrias. Hoje é uma cidade agradável, de avenidas largas e parques agradáveis. Onde ficamos com vontade de regressar...



Parques onde apetece passear

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Apontamentos dos Balcãs




O rio Drina, na Bósnia

Falar dos Balcãs é uma abstração. Em primeiro lugar, porque a palavra denomina uma cadeia de montanhas e foi abusivamente estendida a toda a península. Não por má intenção ou desprezo, mas por pura ignorância. No século XVIII, era uma região distante e estranha, dominada pelos Turcos Otomanos, que os Europeus mal conheciam ou pensavam apenas em termos estereotipados. Em segundo lugar, porque a palavra leva ao engano. Dar um nome significa referir uma unidade e, se há conceito que não pode aplicar-se aos Balcãs é “unidade”. A sensação que sobra de uma visita mais ou menos alargada é a de um conjunto de territórios, intrincadamente enredados uns nos outros, mas com referências muito diferentes, em termos culturais, linguísticos, religiosos. Também não há verdadeiramente multiculturalismo, mas sim choques, mal entendidos e fraturas.


A grande catedral de S. Sava, em Belgrado

Belgrado é uma bela cidade, europeia em todos os aspetos, menos alguns pormenores que afloram de uma história que corre, subterrânea. O passado turco parece propositadamente esquecido, ofuscado pela independência sérvia e por uma forte e evidente fé ortodoxa. Já em  Niš, no sul da Sérvia, essa herança turca é acarinhada e são esses espaços que se mantêm como espaços privilegiados de convivialidade.


Esplanadas dentro da velha fortaleza turca, em Niš

Sarajevo, a capital da Bósnia, parece ser o melhor exemplo de convivialidade interreligiosa. No espaço de 200 metros, encontramos duas mesquitas, uma catedral ortodoxa, outra católica e uma sinagoga. Ao longo dos séculos, estas fés partilharam o espaço, mas as marcas dos bombardeamentos e do cerco dos anos 90 do século XX mostram-nos que o convívio pacífico não passava de uma capa que ocultava tensões profundas. 


A Sarajevo muçulmana

Hoje, Sarajevo é uma cidade aberta, muito turística, mas com uma presença muçulmana muito vincada e evidente. Acontece o mesmo por quase toda a Bósnia, onde cada aldeia ostenta um alto minarete, como que a tomar posse do espaço.


Um minarete em cada aldeia

Há zonas de transição religiosa, que parecem marcar toda a Bósnia. Aí, uma alta cruz no cimo dos montes tenta sobrepor-se aos minaretes das aldeias. Não é por acaso que Medjugorge, na transição da Bósnia muçulmana para a católica, se tornou um enorme local de peregrinação, com um santuário a marcar o lugar das mais recentes aparições da Nossa Senhora.


O Santuário mariano de Medjugorge

O mesmo fenómeno ocorre com a escrita. Se a língua é o servo-croata, aparentada em toda a região, o alfabeto varia, entre o alfabeto latino e o cirílico. E não só varia, como transmite emoções. Na Sérvia profunda, quase todas as comunicações e informações escritas estão em cirílico, mas na maior parte dos locais encontram-se nas duas versões. No entanto, à medida que nos vamos afastando da Sérvia, as inscrições em cirílico vão sendo substituídas pelas latinas, por vezes de forma ostensiva, apagando ou grafitando as anteriores. As consequências das guerras fazem-se sentir de muitas maneiras…


Uma fonte, no sul da Sérvia, com as inscrições em cirílico

Os Balcãs são uma região composta de várias regiões, que caminham olhando em sentidos contrários. Países como a Croácia (que já pertence à União Europeia) e o Montenegro, olham em frente, caminham em direção ao futuro, com dinamismo e estratégia. Apostam no turismo, mas não apenas nas praias. Há uma oferta diversificada, que passa pelas praias, mas também pelo turismo de natureza, montanhismo, turismo cultural. Há muita coisa interessante para descobrir e eu tenho de confessar que o Montenegro foi a melhor descoberta; é uma jóia ainda por desbastar, mas caminha em frente.


Sveti Stefan, na costa do Montenegro
Já a Sérvia parece caminhar arrastando os pés, sempre a olhar para o passado. Centro da antiga Jugoslávia, parece ter parado e desistido, algures entre os anos 80 e os anos 90. O desmembramento dessa potência regional, de que Belgrado era a capital e o centro vital, mantém o país numa espécie de letargia e de indefinição. 


O Danúbio, visto da fortaleza de Petrovaradin

Fora da capital, o turismo é pouco e de âmbito regional, mesmo nas magníficas fortalezas que guardam o Danúbio, ou nos preciosos mosteiros ortodoxos, ou nas chamadas Portas de Ferro.


As Portas de Ferro

Há lixo (embora esse seja um denominador comum a toda a região) e grandes estruturas industriais abandonadas. As pessoas são simpáticas e prestáveis, mas poucas falam inglês. E há uma nostalgia no ar…


Entrada do mosteiro ortodoxo de Sopocani, na Sérvia

Na sala de jantar do belo Hotel Majestic, em Belgrado, há um grande retrato de Lenine. O jornal do hotel refere que muitos turistas tiram fotografias junto do retrato, e explica que certamente as pessoas o fazem porque admiram as ideias do líder comunista.  Também tiramos umas fotos ao lado de Lenine, embora não explique ao criado que o fazemos porque ele é um ícone, embora totalmente anacrónico nos dias que correm.