sábado, 11 de junho de 2016

As igrejas de Amesterdão


O Campanário da Wester Kerk

A palavra Amesterdão evoca imediatamente, na nossa mente, imagens de canais, com as suas casinhas flutuantes, pontes cheias de bicicletas e recantos tranquilos. É, sem dúvida, uma imagem que corresponde à realidade. Os canais de Amesterdão são Património da Humanidade e representam bem o espírito trabalhador e tenaz dos holandeses.
Pouco se ouve falar das igrejas de Amesterdão. E, no entanto, elas encantaram-me pelo que nos contam sobre o modo de ser holandês, a sua proverbial tolerância e o seu pragmatismo. Um passeio pelos locais sagrados de Amesterdão é um percurso pela evolução do seu pensamento sobre a nossa relação com a religião.

Oude Kerk, a igreja mais antiga de Amesterdão

A igreja mais antiga de Amesterdão é a Oude Kerk, edificada em1306 no local onde já existia uma velha ermida de madeira, e consagrada a S. Nicolau, padroeiro dos marinheiros. É uma igreja bastante grande, com mais de trinta capelas e um belo orgão barroco. As convulsões violentas das lutas religiosas do século XVI levaram a igreja para as mãos dos protestantes calvinistas, que a esvaziaram de todas as estátuas e pormenores decorativos. Hoje, o que mais espanta os nossos olhos habituados à riqueza decorativa das igrejas católicas, é precisamente o esvaziamento do espaço, onde apenas restaram as colunas e os bancos de madeira.

O espaço interior da Oude Kerk

A mesma perceção estranha de espaço vazio nos atinge quando visitamos outras igrejas protestantes da cidade. A mais conhecida é provavelmente a Westerkerk, construída já no século XVII, em que as grandes janelas permitem uma bela entrada de luz, que ilumina e alegra o amplo espaço interior. Esta igreja tem o campanário mais alto de Amesterdão, visível de quase toda a cidade. Um pormenor interessante: uma lápide na parede informa-nos de que ali se encontram os restos mortais do grande pintor Rembrandt. O que a lápide não conta é que Rembrandt morreu cheio de dívidas e foi sepultado naquele local porque a família não teve meios para lhe dar uma sepultura mais digna.
Várias igrejas foram perdendo a sua função de locais de culto, ou por falta de praticantes ou por alteração das prioridades cívicas. É o caso da Ronde Lutherse Kerk, com a sua grande cúpula de cobre, que serviu de armazém durante uma grande parte do século XX, até que uma multinacional americana apresentou uma proposta de restauração que foi aceite pela cidade, e a transformou num luxuoso centro de congressos.

A fachada da Nieuwe Kerk

É também o caso da Nieuwe Kerk, em plena Praça Dam. Esta igreja data ainda do século XV, mas desse tempo, pouco mais resta do que o púlpito e o grande vitral virado para a Dam, que representa a entrega das armas da cidade aos seus magistrados. Hoje, a igreja é principalmente uma original sala de exposições. Atualmente, expõe regularmente telas de um artista contemporâneo que se relacionem com temas religiosos. Quando lá estive, estava em exposição a obra Calvary de Marc Chagall: um judeu perseguido que pinta o sofrimento de Jesus, mostrando-o como outro judeu perseguido. Havia painéis interpretativos da obra, contextualizando-a na época e na obra do autor. Gostei imenso desta ideia e desta utilização do espaço.

O altar-mor da Igreja do Nosso Bom Senhor do Sotão

Mas não encontramos só igrejas protestantes em Amesterdão. Nunca deixou de haver católicos na cidade e, depois dos primeiros tempos de perseguição e destruição, os católicos reorganizaram-se e ao seu culto. Um dos espaços mais estranhos e interessantes da cidade é a igreja de Nosso Bom Senhor no Sotão (Ons' Lieve Heer op Solder). Como o nome indica, é uma igreja clandestina, construída nos últimos três andares de uma casa de habitação, completamente escondida dos olhares do público. Foi feita por um comerciante de tecidos, alemão e católico, e era frequentada por muitas das famílias católicas de Amesterdão, que subiam para a igreja por entre os quartos de habitação e os armazéns de tecidos. Hoje, é um espaço museológico muito interessante e bem organizado. Aparentemente, o culto católico era aceite, desde que não fosse visível. Tolerância? Ou um pragmatismo com um toque de cinismo?

A grande basílica de S. Nicolau

Mas os católicos tiveram a sua desforra. Quando lhes foi dada liberdade de culto, construiram a mais monumental igreja de Amesterdão, a Igreja de São Nicolau, terminada apenas em 1887. É uma basílica grandiosa, ricamente decorada, com duas torres barrocas e uma cúpula que se avista de toda a cidade. E merece uma visita atenta.

O altar-mor da basílica de S. Nicolau

Fazendo justiça à sua mentalidade aberta e tolerante, encontram-se hoje em Amesterdão locais para todos os cultos imagináveis. Passei por armazéns transformados em mesquitas e até por um prédio dedicado à Cientologia. A relação dos judeus com Amesterdão também fica bem atestada pela imponente Grande Sinagoga Portuguesa.

A Grande Sinagoga Portuguesa
A Sinagoga Portuguesa conta a história da perseguição movida pela Inquisição ibérica aos judeus, que encontram abrigo e liberdade de culto na Amesterdão dos séculos XVI e XVII. O seu exterior, um grande cubo de tijolo vermelho, não permite prever a beleza e luminosidade do interior. Está rodeada por três sinagogas mais pequenas, que hoje abrigam o Museu Histórico Judeu. Aí encontramos, além de peças preciosas, retratos e documentos interessantes de famílias que ainda têm nomes portugueses. Identificamo-nos com os seus nomes e com as suas atribulações. Aceites no século XVI, trabalharam e contribuiram para a riqueza da cidade. No século XX, quando voltaram a ser perseguidos, nenhum Estado os defendeu, nem o estado holandês, onde há tanto tempo estavam estabelecidos, nem o estado português, ao qual ainda estavam ligados por laços familiares. 

O interior da Grande Sinagoga Portuguesa

E saio de Amesterdão a revolver o verdadeiro significado da palavra tolerância. O que quer dizer, afinal? Admitir junto a nós? Ou aceitar como um de nós? Fico com a minha dúvida...


Vista sobre os telhados de Amesterdão, a partir da Igreja do Nosso Bom Senhor do Sotão