sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Livros e viagens - As Cidades Invisíveis


Qual é a fronteira entre as viagens que fazemos e as que imaginamos? Não há viagens iguais, já sabemos, é o viajante que faz a viagem, refletindo muito de si naquilo que vê. Nós antevemos, planeamos, revemos as viagens que fazemos. Valorizamos umas coisas e desvalorizamos outras, em função dos nossos gostos, das nossas referências culturais, da nossa experiência de vida. refletimo-nos no que vemos e reportamos os nossos reflexos no que observamos.
Italo Calvino, neste livro, parte de conversas imaginárias entre o Imperador Kublai Khan e o viajante veneziano Marco Polo, em que, entre as almofadas de cetim e os rolos de fumo que se evolam dos cachimbos de âmbar, se discute a própria essência do que somos, do que vemos, do que nos rodeia.
Marco Polo descreve ao Khan as cidades do seu império, todas com nome de mulher, cidades que podem ou não existir, porque muitas observações podem aplicar-se a qualquer cidade, a qualquer espaço habitado por humanos. Marco Polo mostra-nos o que vê, como em qualquer viagem. Porque o que é mais relevante, por vezes, não está visível.


Se quiserem acreditar, muito bem. Agora vou contar como é Otávia, cidade teia de aranha. Há um precipício no meio de duas montanhas escarpadas: a cidade está situada sobre o vácuo, ligada aos dois cumes por teleféricos e correntes e passarelas. Caminha-se sobre as travessas de madeira, com cuidado para não meter os pés nos intervalos, ou agarrados às malhas de cânhamo. Por baixo não há nada por centenas e centenas de metros; corre uma ou outra nuvem; entrevê-se mais abaixo o fundo do precipício.
Esta é a base da cidade: uma rede que serve de passagem e de apoio. Tudo o resto, em vez de se elevar por cima, está pendurado por baixo: escadas de corda, camas de rede, tendas suspensas, cabides terraços como barcas odres de água, bicos de gás, espetos, cestos pendurados por cordéis, monta-cargas, duches, trapézios e aros para os jogos, teleféricos, candelabros, vasos com plantas de folhagens pendulares.
Suspensa sobre o abismo, a vida dos habitantes de Otávia é menos incerta que noutras cidades. Sabem que mais do que um certo ponto a rede não aguenta.


Este livro foi editado pela primeira vez em 1972, na altura em que Gabriel Garcia Marquez e Isabel Allende exploravam o realismo mágico na literatura. Italo Calvino reflete essa tendência. Na minha modesta opinião, uma obra-prima da literatura de viagens... imaginárias.





quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Auschewitz - A indústria da morte

A entrada do campo de Auschetwitz 1, com a sua célebre frase Arbeit Macht Frei.
Neste ano em que se comemoram os 70 anos da libertação de Auschewitz e do final da 2.ª Guerra Mundial, tive a possibilidade de visitar aquele que é o mais famoso e mais temido campo do complexo concentracionário nazi. 

As torres de vigilância
Na verdade, o campo é um conjunto de três campos com funções diferentes:
- Auschewitz 1 - Campo de concentração.
- Auschewitz 2 - Campo de extermínio.
- Auschewitz 3 - Campo de fornecimento de mão de obra escrava para o complexo industrial próximo.
O terceiro já não existe, mas os dois primeiros são visitáveis e dão-nos uma boa ideia do inimaginável.

Cercas eletrificadas
O campo de concentração de Auschewitz é hoje um alargado espaço museológico. Tendo mantido muitas das suas estruturas, ainda é possível visitar os barracões, as salas de interrogatório e as celas de detenção, a zona da forca e a parede de execução, o edifício das experiências médicas. 

O muro de execução

Em muitos desses espaços, há cartazes, fotografias, desenhos, que explicam e enquadram os horrores que ali se passavam.

Fotografias tiradas pelos Nazis

Há salas e salas cheias com os bens que eram retirados aos prisioneiros: das malas aos sapatos, dos estojos da barba às próteses e membros artificiais. Tudo reutilizável, na ótica nazi!

Próteses e membros artificiais
Há uma sala com toneladas de cabelo de mulher, cabelos loiros, negros, grisalhos, tranças, caracóis... Do outro lado da sala, uma vitrine exibe um rolo de tecido fabricado com este material humano.
Todo o complexo foi cencebido para a mais completa e eficiente extorsão dos milhões de prisioneiros que por ali passaram: eram espoliados dos seus bens, depois era-lhes sugada a força de trabalho, a energia de viver, a personalidade, até lhes ser retirada a própria vida e utilizados todos os componentes do seu corpo. É esta organização industrial da morte o que mais impressiona em Auschewitz.

O único forno crematório que se manteve
Há uma pequena sala de cinema onde é exibido, regularmente, o filme que os soldados soviéticos rodaram à sua chegada ao campo. É importante vê-lo, para que não seja possível negar o que ali acontecia.

Um dos vagões de transporte de prisioneiros
O campo 2, Auschewitz-Birkenau, era o maior dos campos de extermínio. Ao contrário do campo 1, pouco aí resta: dos barracões só restam algumas estruturas, as câmaras de gás foram parcialmente destruídas, assim como os fornos crematórios. 

O que resta das câmaras de gás de Birkenau
Mas resta a linha do comboio. Quando passamos pela temível entrada do campo e nos colocamos no final da linha do comboio, nas mesmas plataformas que vimos nas fotografias de Auschewitz 1, cheias de gente cansada e desorientada, onde um médico brinca de Deus, selecionando os que vão morrer já, dos que vão sobreviver mais algum tempo... assalta-nos uma terrível angústia, misturada com a eterna questão: como foi possível?

A entrada do campo de Birkenau
Uma visita a Auschewitz mergulha-nos na possibilidade do inferno na terra. Há sempre qualquer aspeto que nos nos marca, como uma bofetada na nossa humanidade. E cria-nos um sentimento de urgência: aquilo nunca mais pode ser possível!


Placa memorial escrita em ladino, a lingua dos judeus sefarditas de origem portuguesa.