segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Irlanda, do passado ao presente

 

Representação de danças tradicionais irlandesas
junto ao Centro Cultural de Brú Ború, em Cashel

Na Irlanda, o passado está sempre presente. Na maioria dos casos, pelas piores razões... A pequena ilha foi colonizada e explorada pelo seu poderoso vizinho britânico, originando um azedume e uma revolta que se transmitiu pelos séculos e que ainda hoje assombra as relações entre os dois povos. Esta convivência difícil está muito patente em cidades como Derry ou Belfast, mas assoma constantemente, seja em episódios trágicos seja em piadas sarcásticas.

Momentos e rostos da história da Irlanda, fixados no Salmão da Sabedoria (Belfast)

A história mais antiga, pelo contrário, é romantizada e surge-nos na forma de mitos, contos de fadas, canções, que juntam as raízes célticas a uma melancolia de paraíso perdido.

A harpa de Brian Ború, recuperada e exposta no Trinity College

Para regressar a essa Irlanda céltica, o melhor é visitar Brú na Bóinne, o grande complexo neolítico que se situa em County Meath, junto ao rio Boyne, a norte de Dublin. Crê-se que terá sido construído cerca de 3200 a.C. e é composto por três grandes recintos tumulares e rituais. 

Planta para exploração de Brú na Bóinne

Nós não tinhamos comprado bilhetes (que grande falha na minha organização...) mas ainda conseguimos arranjar, no Centro Interpretativo, dois bilhetes para a visita guiada a Newgrange, o mais imponente conjunto tumular. Aqui não há visitas livres, têm de ser guiadas e com bilhetes, mas vale muito a pena. O recinto é enorme, coberto de terra e rodeado por pedras com símbolos célticos. Há muitos significados que nos escapam, mas a grandiosidade é marcante.

O recinto tumular de Newgrange (exterior)

A entrada de Newgrange

Os menires fronteiros

No mesmo dia, ainda fomos à descoberta da Colina de Tara. É uma colina relvada, com elevações em anel, túmulos subterrâneos e um grande simbolismo enquanto lugar de coroação real, onde se fazia a sagração do High King. A lenda afirma que a Pedra do Destino ressoa quando o verdadeiro rei a toca ou anda à sua volta, mas connosco manteve-se muito sóbria e silenciosa.

A Pedra do Destino

Os túmulos subterrâneos

Os tempos medievais são particularmente marcantes no imaginário irlandês. Foi o tempo dos reinos tribais, de S. Patrício e da conversão ao cristianismo das populações da ilha, dos mosteiros onde os monges copiavam laboriosamente os textos sagrados. Em Dublin, o Trinity College guarda alguns desses tesouros, como a harpa alegadamente pertencente a Brian Ború ou o Book of Kells, uma obra de arte com mil e duzentos anos, com uma decoração elaborada e coberto de iluminuras delicadas.

A biblioteca do Trinity College

O Book of Kells foi salvo da destruição por um golpe de sorte, quando das invasões vikings. Hoje, ocupa um lugar de destaque na bela Biblioteca do Trinity, dentro de um museu construído especialmente para ele. Eu tinha uma grande expectativa para esta visita, mas o Livro está dentro de uma redoma e só se pode ver uma página. Enfim, a toda a volta do precioso livro as paredes mostram grandes reproduções das iluminuras, com todas as explicações necessárias. Gostei muito mas confesso que, mesmo assim, fiquei um bocadinho dececionada. Afinal, as cópias são sempre menos entusiasmantes do que os originais...

Imagens das maravilhosas iluminuras do Book of Kells


Desses tempos medievais vem também o culto de S. Patrício, hoje comemorado em todos os lugares do mundo onde se estabeleceu um irlandês. Há inúmeras capelas e igrejas que lhe são dedicadas. Está sepultado na belíssima Catedral de Saint Patrick, em Dublin, ela própria construída à volta de um poço sagrado, no qual se diz que St. Patrick batizou vários convertidos, cerca do ano 450. O poço ainda lá está, assim como uma quantidade imensa de bustos, estátuas, bandeiras, peças de mobiliário e lápides tumulares, convertendo a igreja numa espécie de floresta museológica que só se consegue desbravar com a ajuda de um folheto explicativo que nos é fornecido à entrada, com o bilhete.

A Catedral de Saint Patrick

O interior da catedral, com as suas múltiplas referências e memórias


O desgosto com o domínio inglês também fez com que os irlandeses olhassem para o seu passado medieval com fervor e nostalgia. Em nenhum local isso é mais evidente do que em Cashel, no castelo e presbitério imponentemente erguido na planura de Tipperary: o Rock of Cashel.

The Rock of Cashel ergue-se na planície de Tipperary


É visível de toda a planície e impõe-se como uma enorme afirmação de poder. Terá sido erguido no século IV ou V, e seria a residência dos reis de Munster, que reinavam sobre todo o sul da Irlanda. Aí viveu ainda Brian Ború, o mítico High King of Ireland que conseguiu derrotar os Vikings no século XI. E aí existe hoje em sua memória o Centro Cultural de Brú Ború, que tenta recriar os costumes da época, oferecendo espetáculos de música tradicional, dança, teatro e artesanato.

Por entre as ruínas de Rock of Cashel

No século XI, Cashel é entregue à Igreja e continua a florescer como centro de desenvolvimento económico e cultural da região. É dessa época a grande igreja gótica e o mosteiro, hoje sem telhados e bastante arruinados mas, mesmo assim, imponentes. À volta da igreja, as cruzes célticas multiplicam-se mantendo um ambiente de misticismo.

As cruzes célticas dominam o cemitério do mosteiro


Em toda a zona de Cashel se podem ainda encontrar ruínas de antigos mosteiros que viviam em ligação com o grande presbitério lá no alto...

Ruínas do mosteiro de Saint Dominic, em Cashel

O High King Brian Ború representa de alguma maneira a autonomia altiva dos irlandeses. A sua cabeça, ao lado da de St. Patrick, surge esculpida no Castelo de Dublin. 

No castelo de Dublin

E é a sua harpa, guardada na biblioteca do Trinity College, que serve hoje de símbolo da Irlanda e nos aparece em todo o lado, desde a bandeira nacional até à companhia aérea irlandesa, desde a moeda de euro cunhada na Irlanda até ao rótulo da Guiness, a cerveja mais icónica da pequena ilha.

A Harpa, símbolo da Irlanda

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Kutná Hora, a riqueza da Boémia

 

Kutná Hora, uma boa descoberta

Quando hoje descemos do pequeno comboio regional que serve a também pequena cidade checa de Kutná Hora, é difícil imaginar que estamos a chegar àquela que já foi a segunda cidade mais importante da Boémia, onde se extraía a prata que circulava por toda a Europa. Estavamos no século XIII quando se descobriu o filão de prata que enriqueceu o rei da Boémia. A moeda que ali se cunhava tinha o nome de taller, que veio a originar a palavra dólar que todos bem conhecemos... Parece que no século XIV ali se extraíam seis a sete toneladas de prata anualmente. No século XVI, a prata começou a escassear e a cidade também começou a perder a sua importância. No entanto, mantém muitos vestígios da imponência de antigamente, suficientes para tornar uma visita a Kutná Hora um passeio cheio de descobertas fascinantes.

Edifícios na zona central de Kutná Hora

A estação dos caminhos de ferro já viu melhores dias. Acumulam-se aí velhos comboios, alguns ainda do tempo da 2.ª Guerra Mundial, sem sombra de dúvida...

Velhas carruagens...

É preciso subir para o centro histórico. Durante a subida, vamos apreciando os edifícios que viram as suas fachadas com frescos serem recuperadas nos últimos anos. Encontramos cartazes que exibem o antes e o depois e percebemos que a decadência da cidade se tinha arrastado pelos anos, até à década de 1990. Também vamos encontrando restaurantes com bom aspeto e que prometem comida tradicional, e vamos já marcando um ou outro para pararmos no regresso...

Há muitos edifícios com frescos nas fachadas


No topo da colina, aguarda-nos o esplendor da grande Igreja de Santa Bárbara. Iniciada ainda no século XIV, é um belo exemplar do gótico tardio da Boémia, que só é comparável à Catedral de S. Vito, em Praga. A construção da catedral está intimamente ligada à atividade mineira da extração da prata em Kutná Hora e há imensos pormenores que relembram essa ligação. Nos frescos de uma das paredes laterais opostas ao altar-mor ainda podemos ver dois fabricantes de moedas trabalhando uma placa de prata com um cunhador.

A belíssima Catedral de Santa Bárbara

Os frescos com a representação da cunhagem das moedas

A meio da igreja, uma estátua de madeira policromada retrata um mineiro, vestido com uma túnica branca e ostentando os símbolos do seu trabalho, uma lanterna e uma ferramenta chamada stajgra. Parece-me uma bela homenagem aos mineiros que fizeram a riqueza da cidade.

A estátua do mineiro

Altares laterais da Catedral

O exterior é muito original: os três campanários da igreja fazem lembrar grandes tendas erguidas acima da floresta de pináculos góticos que a rodeiam. Infelizmente, não consegui tirar uma fotografia do conjunto, já que o acesso é feito pela rua que ladeia o vale e que é tão surpreendente que quase ofusca a vista da catedral. Chama-se rua Barborská e é uma rua pedonal rodeada de estátuas, a fazer lembrar a célebre Ponte Carlos, em Praga. Os reis e santos sucedem-se, numa rua que é quase um balcão sobre o vale, do qual se obtêm vistas magníficas.

A Rua Barborská

Outra perspetiva da Rua Barborská

Vista sobre o vale a partir da Rua Barborská

A cunhagem das moedas de prata era feita no chamado Pátio Italiano, em referência ao facto de terem sido chamados artesãos florentinos para o trabalho da cunhagem. Aí funciona agora a Câmara Municipal. Ao lado, existe um Museu da Mineração, que inclui uma visita a uma mina medieval. Deve ser muito interessante, porém, há que fazer opções e já não tive tempo de fazer essa visita.

Câmara Municipal de Kutná Hora, com a estátua de Masaryk (primeiro presidente
 da República Checa)

Nem só de memórias de riqueza vive Kutná Hora. Nos arredores da cidade (em Kutná Hora Sedlec), são as memórias do que nos espera depois da morte que são preservadas no extraordinário Ossuário de Sedlec. Para lá chegar, é preciso sair do tal pequeno comboio na penúltima estação e depois caminhar um pouco até chegar à Igreja de Todos-os-Santos. 

Coluna junto ao cemitério de Sedlec

Entrada do Ossuário de Sedlec

Mas vale a pena: o ossuário da Igreja juntou, ao longo dos séculos, os ossos de cerca de 60 000 pessoas. Sob o lema Memento Mori – Lembra-te de que morrerás – os ossos foram sendo reunidos de forma artística, de modo a formarem figuras e símbolos cristãos. É um local verdadeiramente extraordinário. A partir do arco de entrada, as fotografias são estritamente proibidas, pelo que as imagens abaixo são fotografias de postais que comprei no local.


Hoje, todo o conjunto monumental de Kutná Hora foi declarado Património da Humanidade, protegido pela UNESCO.