sábado, 28 de janeiro de 2023

Uma escapadela provençal – Marselha

 

Marselha e a basílica de Notre Dame de la Garde vistas do topo do Chateau d'If

Marselha é a cidade mais antiga de França. Foi fundada pelos gregos que lhe chamaram Massilia há 2600 anos, mais coisa menos coisa. Capital da Provença, hoje é a segunda cidade mais populosa de França, logo a seguir a Paris, e o seu clube de futebol é o que junta mais adeptos! E, todavia, não é um destino turístico dos mais óbvios, dentro da França. Colou-se-lhe o rótulo de cidade perigosa, do crime organizado, com muitos bairros problemáticos. Um pouco como Nápoles...

A grandiosa escadaria que leva à estação dos Caminhos de Ferro, a Gare Saint Charles. Vestígios de tempos mais prósperos...

Memorial aos soldados mortos nas guerras do Ultramar

A Câmara Municipal de Marselha

Nestas questões, como em muitas outras, há que relativizar a informação e agir com sensatez e precaução. É sensato evitar os subúrbios e, se calhar, não é o destino turístico mais adequado para quem quer curtir a noite. Mas tendo os cuidados normais de segurança, não há nenhuma razão que nos impeça de visitar esta cidade que nos oferece uma história fascinante, desdobrada em muitas histórias e muitos locais. Basta lembrarmos que foi aqui que nasceu o hino “A Marselhesa”, para sempre associado à defesa dos valores que ainda hoje nos regem, a Liberdade, a Igualdade, a Fraternidade.

O Memorial da Marselhesa é um pequeno museu, que está em obras

O porto, à noite...

La Canebière, à noite

O coração da cidade é o Porto Velho, o Vieux Port, onde os gregos lançaram âncora há tantos séculos atrás. É uma ampla enseada natural, protegida dos maus humores marítimos pelas ilhas do arquipélago do Friul. As ruas principais ali vão desembocar, como La Canebière, a rua principal, mais larga e mais comercial. Mas à volta do Porto Velho, nas docas assim como nas ruas que rodeiam o porto, a animação não pára. Há bares e restaurantes para todos os gostos. Ali se pode experimentar o prato típico marselhês, a bouillabaisse, uma espécie de caldeirada. E os peixes para a bouillabaisse podem-se comprar mesmo ali, no porto velho, no mercado tradicional que anima todas as manhãs a beira do cais.

bouillabaisse

O tradicional mercado do peixe

A vida da cidade flui para o velho porto, tudo ali acontece. É ali que as pessoas se juntam, para tratar de negócios ou para festejar. Quando estivemos em Marselha, a seleção de futebol de Marrocos tinha ganho um jogo importante e a numerosa comunidade de imigrantes magrebinos festejava o acontecimento debaixo de uma grande pala espelhada junto ao cais. O efeito era fantástico: o grande espelho sobre a multidão refletia e multiplicava os festejos, já de si ruidosos e coloridos.

A pála espelhada multiplica a festa

O Vieux Port é tão grande e com tantos barcos, de todos os feitios, que pode passar despercebido o velho ferry que cruza o porto a todas as meias horas. Por 50 cêntimos poupam-se os muitos passos necessários para rodear o cais... 

O ferry que cruza o porto a cada meia hora

Do lado esquerdo de quem olha a cidade a partir do mar, fica o bairro mais antigo da cidade, Le Panier, de ruelas estreitas e casas antigas que sobem a colina. Um dos edifícios mais notáveis é uma casa coberta de pedras talhadas em ponta de diamante, uma espécie de Casa dos Bicos. Onde é que eu já vi isto?

Mais uma Casa dos Bicos?

A basílica de Notre Dame de la Garde vista do bairro Le Panier

A entrada do porto é fechada por dois fortes, Saint-Nicholas e Saint-Jean, que podiam facilmente proteger a cidade de ataques inimigos. Acima do forte Saint-Nicholas destaca-se o imponente Palais du Phare, mandado construir por Napoleão que, no entanto, nunca aí passou uma noite.

O grande Palais du Phare

O Palais du Phare com a entrada do porto

Do outro lado, o forte Saint-Jean está hoje integrado no grande Museu das Civilizações do Mediterrâneo, o MUCEM, um espaço museológico enorme e moderníssimo que, no entanto, mergulha as raízes no passado, nas ligações que cruzam o Mediterrâneo e entrelaçam as suas tradições e formas de vida milenares. É impossível ir a Marselha e ficar indiferente ao MUCEM, seja pela arquitetura arrojada, seja pelas exposições e pelo próprio espaço.

Entrada do MUCEM pelo Fort Saint Jean

O cubo de malha de betão que alberga as exposições permanentes

De dentro para fora...

As ilhas do arquipélago do Friul são interessantes e visitáveis, especialmente para os que gostam de turismo de natureza. Mas há uma ilha especial, a que alberga a velha prisão onde Alexandre Dumas colocou a intriga do seu Conde de Monte Cristo, o Chateau d’If. Há barcos que a todas as horas fazem a ligação entre o porto e a Ilha d’If. Aparentemente, esta espécie de turismo carcerário tem muitos adeptos, desde o século XIX. Gostei de visitar o pequeno castelo-prisão. Mas, mais uma vez, fascinou-me a forma como a literatura toma posse dos lugares e os transfigura. Nunca existiu um Conde de Monte-Cristo, a não ser na imaginação de Dumas, mas pode-se visitar a cela onde ele terá estado preso, com direito a uma pequena tabuleta identificativa.

A ilha d'If

A fortaleza-prisão

O pátio central da fortaleza

Entrada da cela dita de Edmond Dantès

A bordo do barco que faz a ligação com a ilha d’If, o nosso olhar não pode deixar de ser atraído pela enorme figura de Notre Dame de la Garde. Situada na colina sobre Marselha, a basílica coroada por uma estátua monumental da Virgem Maria com o Menino é como um íman: visível de todos os lados, é a figura tutelar da cidade. Mas é preciso subir até à basílica para entendermos bem essa ligação com a cidade. A grande figura dourada da Virgem segurando o Menino Jesus está colocada num pedestal sobre a basílica. Dos seus terraços, tem-se uma vista panorâmica maravilhosa, desde as ilhas do Friul, passando por toda a cidade de Marselha, até aos contrafortes dos Alpes Marítimos.

Notre Dame de la Garde, vista do porto

As ilhas do arquipélago do Friul, vistas da esplanada da basílica

Memorial aos missionários 

A basílica de Notre Dame de la Garde, chamada pelos marselheses de bonne mère, foi construída apenas no século XIX, numa colina onde já existiam várias capelas e um posto de vigia. De estilo neobizantino, mostra uma sucessão de cúpulas, frescos, mosaicos coloridos e pedras policromadas, mas talvez o mais interessante sejam os inúmeros elementos marítimos e ex-votos aí deixados pelos marinheiros de Marselha.

Subindo para a basílica de Notre Dame de la Garde

Vista lateral da basílica

O interior, mármores e mosaicos

Também de estilo neobizantino, a imponente Catedral de Marselha marca a zona ribeirinha. É formada por duas igrejas que foram sobrepostas. A velha igreja do século IV, reconstruída nos séculos XI e XII depois dos ataques sarracenos, foi ampliada no século XIX, por ordem de Napoleão III. Na vasta esplanada que a rodeia, há uma estátua de Monseigneur de Belsunce, que nos recorda o período da Grande Peste de 1720, a última grande epidemia a assolar a Europa, pelo menos até ao século XX...

A catedral neobizantina de Marselha

A catedral vista do Fort Saint Jean

Nessa altura terrível, os barcos eram deixados ao abandono, ao largo da cidade, cheios de mercadorias preciosas que ninguém queria e de doentes de peste de que todos temiam o contágio. Hoje, os barcos de migrantes que tentam cruzar o Mediterrâneo também deixam um rasto de morte. Marselha, uma cidade feita por migrantes, construída sobre o comércio mediterrânico, mostra-nos que o caminho pode ser outro, porque é mais o que nos une do que o que nos separa.


Não há como não amar Marselha!


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