domingo, 19 de junho de 2022

A propósito da Gare de Lyon

 

Uma das graciosas entradas da Gare de l'Est

Tenho uma enorme atração por estações de caminhos de ferro. São monumentos extraordinários. Tal como as catedrais da Idade Média exprimiam a religiosidade e o fervor da população, as grandes estações de caminhos de ferro também traduzem os sentimentos e as aspirações de uma época. A maioria das grandes estações foi construída entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX. São enormes estruturas de ferro e vidro que contam os avanços tecnológicos do tempo e refletem a crença no progresso e nas capacidades do ser humano, em especial o europeu. É o homem europeu que olha para as suas realizações e se deleita com elas.

Pormenor do trabalho do ferro na Gare d'Austerlitz

As grandes estações servem os comboios, esses símbolos da era industrial. Pela primeira vez, o homem podia deslocar-se através de uma força motriz criada por ele próprio. Já não estava dependente da força dos animais, ou do vento, ou da água. É claro para nós, hoje, que os custos ambientais foram enormes, mas como podia isso ser preocupante para o homem do início da era industrial, inebriado pelo seu próprio sucesso?

Ponte ferroviária sobre o rio Sena

O comboio não tardará a ser ultrapassado pelo automóvel e pelo avião mas, pelo menos para mim, uma viagem de comboio mantém um encanto e um ritmo próprios, que não foram substituídos. As grandes estações de caminhos de ferro mantiveram-se como monumentos às realizações tecnológicas e à sensibilidade de uma época.

Paris, centro do mundo civilizado no início da século XX, capital da Belle Époque, cadinho de experiências artísticas e sociais, reproduz, nas suas estações, um mundo desaparecido.

O elegante campanário da Gare de Lyon

Inaugurada em 1900, na época da Grande Exposition, a Gare de Lyon é muito mais do que uma estação. É criada para ligar o norte ao sul do país, de Calais a Marselha, passando por Paris e Lyon. Muitos dos que a utilizam são famílias inglesas que descem para a Côte d’Azur para escapar às chuvas inglesas. A Gare de Lyon mostra-lhes o melhor de França. Os bronzes esculpidos das escadarias. A grande torre do relógio, a fazer lembrar o Big Ben. Os estuques das paredes e os lustres. Os frescos e pinturas, que são como postais ilustrados da Paris da Belle Époque. Quando ali passei, em maio de 2022, muitos espaços estavam cobertos com tapumes, em remodelação. Mas, com a entrada um pouco escondida, na Gare 1, ainda se encontra a entrada para o “Train Bleu”. O salão restaurante é particularmente requintado, com o seu tom Art Deco. Ainda hoje se pode tomar aí uma refeição ou, pelo menos, o cocktail “Train Bleu”, que relembra o célebre comboio que levava os burgueses endinheirados para as paragens soalheiras do sul. O mesmo “Train Bleu” imortalizado no romance de Agatha Christie, onde Poirot desvenda mais um crime.

O requintado "Train Bleu", retrato de uma época



Hoje, a Gare de Lyon continua a movimentar milhares de pessoas diariamente. A estação modernizou-se, mas as plataformas e escadas rolantes, as máquinas e terminais eletrónicos, a entrada e saída dos TGV, não conseguem esconder a beleza e a magia da velha estação. Para quem quiser ver, é claro!

Pinturas dos locais turísticos franceses, sobre as bilheteiras

As outras estações de Paris têm histórias igualmente ricas, ligadas à arte e à sociedade da época que as viu nascer.

Partidas e despedidas num quadro no átrio da Gare de l'Est

A Gare du Nord, construída pelo barão de Rothschild, já mal ecoa os bailes que ali se realizavam. As estátuas que ornamentam a sua frontaria representam as cidades com as quais fazia ligação, como Bruxelas ou Colónia. Hoje, é a estação ferroviária europeia que movimenta um maior número de passageiros por ano. Aí chega o Eurostar, que passa sob o Canal da Mancha, ligando Londres à Europa Continental.

A frontaria da Gare du Nord

A estação europeia com maior movimento de passageiros

A Gare de Montparnasse também esconde segredos. Ali, atrás do balcão de uma pequena loja de doces e brinquedos de lata, trabalhou e sonhou Georges Meliès. Quem sabe se não foram os grandes comboios resfolegantes que o inspiraram, na criação fantástica dos primeiros filmes de ficção científica que contam viagens à Lua e ao Sol? Já pouco resta dessa época. A Gare de Montparnasse é a mais moderna das gares de Paris.

Quanto à Gare de St. Lazare, influenciou seguramente Claude Monet, que a pintou vezes sem conta, tentando apanhar a cor e a luz, sempre mutável, quando os comboios entravam e espalhavam o seu fumo sob os telhados de vidro.

A chegada de um comboio à Gare de San Lazare, Claude Monet

A Gare de l’Est, uma das mais antigas de Paris, conta histórias tristes, de deportações e partidas dolorosas. Ainda hoje guarda as memórias dos soldados que dali partiram para a frente de batalha, na 1.ª Guerra Mundial, assim como dos muitos franceses que ali foram embarcados para o leste, durante a 2.ª Guerra Mundial: muitos trabalhadores forçados e tantos outros levados para os campos de concentração do Leste, dos quais poucos regressaram. Prefiro olhá-la como o local de partida desse ícone das viagens ferroviárias, o Expresso do Oriente!

Memoriais dolorosos na Gare de l'Est

Das grandes estações de caminhos de ferro de Paris, uma foi inativada. É a Gare du Quai d’Orsay, transformada num museu magnífico, onde se reuniram as obras dos artistas franceses da segunda métade do século XIX e início do século XX. Com a sua bela fachada virada para o rio Sena, recheada com as obras artísticas da época de ouro dos comboios a vapor, a Gare du Quai d’Orsay continua a ser um monumento de exaltação de uma época única da história europeia: a era industrial.

A antiga Gare du Quai d'Orsay, da linha Paris-Orleans, hoje transformada num museu


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