Khiva situa-se no noroeste do Uzbequistão, junto à fronteira com o Irão, às portas do deserto. É uma região árida, entre os desertos de Karakum e Kysylkum. A primeira impressão que tive, ao chegar, foi a de que a cidade se erguia do próprio deserto, do qual copiava a cor. Das muralhas às casas de habitação, como cubos virados para um pátio central, tudo o que se avista é do mesmo cinzento amarelado, a cor da terra, a cor do deserto.
No entanto, é errado pensar-se que estamos num sítio inóspito, nos confins da terra civilizada. A capital da província, Urgench, não fica longe e tem um aeroporto razoável, assim como razoáveis são as estradas que cobrem a província. Herança dos tempos soviéticos...
Khiva é um mergulho no passado. Toda a cidade muralhada está bem preservada e podemos sentir-nos um Lawrence da Arábia em passeio. Ou um escravo, à espera de ser vendido... Khiva desenvolveu-se como grande mercado de escravos e daí retirou a sua prosperidade, pelo menos nos séculos XVII e XVIII.
Os comerciantes que chegavam a Khiva vindos das estepes geladas do norte ou dos desertos tórridos do sul, traziam também outros produtos, como as peles, que ainda hoje se encontram à venda nos bazares. Podemos comprar um gorro de astrakan ou uma écharpe de pelo de camelo. Que pena não ter onde os usar!
No centro da cidade, a mesquita Juma relembra-nos esses mercadores. É uma mesquita diferente do que encontramos noutros locais do Uzbequistão. Não tem o grande portal em arcada, nem abóbadas. Quando entramos, o que nos rodeia é uma autêntica floresta de pilares de madeira, delicadamente ornamentados, iluminados pela luz difusa de uma clarabóia. São mais de duzentos, cada um deles esculpido com um padrão decorativo diferente. A maioria foram oferecidos por comerciantes que os traziam nas suas caravanas, entre os séculos X e XIV. Imagino o esforço e a perícia necessários para transportar aquelas enormes colunas no dorso de camelos! Ainda hoje, quando ali entramos, temos a sensação de mergulhar num espaço fresco e misterioso de oração, uma floresta de tranquilidade.
Até ser integrado no Império Russo, o território era governado por um Khan e, para proteger o local de trocas que lhe garantia a riqueza, o Khan fez construir uma alta muralha de adobe e uma fortaleza, ou Ark. O Khan aí tinha os seus aposentos, as suas salas de oração, o seu harém. Aí existiam também os espaços dedicados à receção de embaixadores ou a reuniões.
Os povos nómadas das estepes recusavam-se a ser recebidos em situação de inferioridade. Para garantirem a sua igualdade de status, o Khan tinha mandado erigir, no seu pátio de receções, uma espécie de pedestal circular, largo. E era aí que o chefe de tribo montava a sua tenda, à altura do trono do Khan, e daí fazia as suas transações.
O harém também ocupa um lugar importante, no palácio do Khan. O pátio é retangular, com portas e postigos. Tudo está definido: por onde entra e sai o Khan, mas também a mãe, ou a primeira esposa, que tem por função controlar toda a população do harém, com as suas invejas, guerrilhas e mexericos. Não devia ser tarefa fácil! Olho para os postigos fechados por onde as mulheres espreitavam para o pátio, e penso que a sua vida também não devia ser fácil. Geralmente, não estavam ali por escolha pessoal. O que sentiriam, o que pensariam?
O azul continua sempre a rodear-nos, mas aqui já não encontramos os painéis e padrões tipicos de Samarcanda. Aqui, no palácio do Khan, é como se as paredes estivessem cobertas de um pano tecido com um padrão delicado. Os azulejos repetem até ao infinito os seus pequenos padrões azuis.
Estes delicados padrões encontram-se também no mausoléu do poeta Pahlavan Mahmoud, considerado o protetor de Khiva. Mas o monumento mais imponente é, sem dúvida, o grande minarete Kalta Minor, com a sua decoração brilhante e colorida. Ficou inacabado. Como seria se tivesse sido terminado, avançando em direção ao céu?
Não consigo impedir-me de, em cada local, para qualquer época, imaginar as pessoas que ali fizeram a sua vida. Talvez por isso me tenha tocado tanto um pequeno museu que quase passa despercebido na cidade. Está situado na antiga casa de um fotógrafo, Devonov Xudoybergan. Era um curioso da fotografia, essa arte que no início do século XX estava a dar os primeiros passos. Ele fotografou muita gente da cidade, famílias, jovens casais, comerciantes com os seus camelos, os guardas do Khan.
Hoje, reunidas naquela pequena casa, essas fotos mostram-nos um mundo fascinante, já desaparecido. O próprio fotógrafo desapareceu da pior maneira, preso e fuzilado como traidor da revolução, numa das frequentes e tristemente célebres purgas estalinistas, no final dos anos 30.
Mas as suas fotos ali continuam, como uma homenagem póstuma; como se o fotógrafo se perpetuasse através da sua obra, essas fotos que nos permitem espreitar para o espaço e o tempo em que viveu.
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