quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Os fantasmas de Salónica



A Torre Branca vista do mar

Confesso que o título desta crónica é inspirado num livro de Mark Mazower intitulado "Salónica e os seus fantasmas". Não foi por ler esse livro que resolvi ir a Salónica (embora já não fosse a primeira vez que isso acontecia...) mas o livro ajudou-me a entender melhor a cidade, as suas dinâmicas, os seus espaços, as suas ausências.
O meu objetivo era visitar o Museu dos Túmulos Reais da Macedónia, sobre o qual já aqui escrevi. A cidade com aeroporto mais próxima era Salónica e, por isso, foi a escolha evidente para servir de base de estadia nesse fim de semana prolongado.


O Golfo Termaico visto da Cidadela

Salónica, ou Thessaloniki, é a segunda cidade mais importante da Grécia, logo a seguir a Atenas, mas durante séculos foi a cidade mais populosa e economicamente mais poderosa de todo o atual espaço grego. Situada no extremo norte do Mar Egeu, constituiu um cruzamento entre o norte e o sul, o oriente e o ocidente, ponto de passagem de mercadores, capitais, filosofias e religiões. A meio caminho entre a Cristandade e o Islão, com uma enorme comunidade de judeus fugidos da Inquisição Ibérica, a cidade desenvolveu um espírito tolerante e cosmopolita.
As épocas históricas deixaram as suas marcas, que se sobrepõem como as camadas de um bolo.
A velha ágora grega foi transformada em forum romano; ainda exibe as bancadas do teatro, além de várias colunas e uma razoável colónia de gatos. O imperador Galério construiu aqui um grande palácio, do qual já pouco resta. Mas, em contrapartida, ficou de pé o seu mausoléu, depois transformado em igreja, depois em mesquita, hoje fechado... É a Rotónda, um edifício ainda impressionante que, graças às mudanças por que passou, exibe hoje o único minarete de Thessaloniki.


A Rotonda

Deixou também um extraordinário Arco de Triunfo, para celebrar a sua vitória sobre os Persas. Dos oito pilares, distribuídos por duas filas de arcos e cobertos por uma cúpula, da obra original, sobram apenas quatro, mas os seus magníficos relevos e a sua grandiosidade ainda nos espantam.


Os relevos do Arco de Galério

O melhor testemunho da época bizantina é a igreja de Aghia Sophia. Construída nos séculos VIII e IX, é uma réplica em ponto pequeno da sua homónima de Constantinopla, aliás Bizâncio, aliás Istambul... Tem pinturas a fresco de grande beleza, como a da cúpula, que representa a ascensão de Cristo, e trabalhos de escultura de enorme delicadeza. É Património da Humanidade, claro!


Aghia Sophia, por fora...

... e por dentro.

Igualmente impressionante é a Igreja de Aghios Dimitrius, mas pela sua riqueza decorativa. São Dimitrius é o patrono da cidade e esta é a maior igreja da Grécia. Foi destruída pelo grande incêndio de 1917, por isso pouco sobra da velha igreja do século IX, mas foi reconstruída com tanta generosidade decorativa que merece a visita.


A Igreja de Aghios Dimitrius

A igreja tem ícones maravilhosos

Ainda há alguns vestígios da antiga igreja

Devoção...
Os banhos turcos estão encerrados para recuperação, mas o velho bairro turco de Ladadika continua a mostrar a animação dos velhos tempos! Foi das poucas áreas da cidade que escapou aos incêndios e bombardeamentos do século XX e é aí, nos seus largos empedrados e nas suas ruas estreitas, que se concentram os bares e as tavernas. O ambiente é animado e, felizmente, o nosso hotel é mesmo ao virar da esquina!


Os velhos banhos de Bey Hamman


Os bares e as tabernas no bairro de Ladadika

Os cafés e restaurantes mais requintados, todavia, são os que rodeiam a Praça de Aristóteles, aberta para o mar. É o centro da zona moderna de Thessaloniki, que acompanha o velho cais, numa longa marginal que nos leva até à Torre Branca. 


Restaurantes na Praça Aristóteles


A marginal de Salónica

A Torre Branca, edificada pelos turcos, rodeada de jardins e esplanadas, é hoje o ícone de Thessaloniki. Até ao século XIX, a Torre Branca funcionou como prisão, mas hoje é um interessante espaço museológico que nos guia pela história da cidade, pelos seus espaços e pelas populações que os habitaram. E a vista, lá de cima, é magnífica!


A Torre Branca


Uma viagem pela história da cidade

Frente à Torre Branca, há uns ancoradouros de onde partem barcos que passeiam frente à cidade, no Golfo Termaico. Entrámos num barco original, travestido de galera romana. O barco é grátis, as bebidas lá dentro são de consumo obrigatório! Mas o passeio vale a pena. À nossa frente, a cidade sobe até à velha cidadela. Do lado direito, avista-se a península que prossegue até ao Monte Athos, o monte sagrado, onde ainda hoje não entram mulheres. Do lado esquerdo, conseguimos vislumbrar a cordilheira montanhosa onde se ergue o Monte Olimpo, o lar dos deuses. Que local privilegiado!


Um dos barcos que oferece passeios pelo golfo

Perto da Torre Branca, destaca-se o conjunto escultórico de Alexandre o Grande. Gostei muito da estátua de Alexandre. Ele cavalga o seu cavalo Bucéfalo numa atitude de ataque vitorioso. Não temos maneira de saber se o retrato é realista, mas a estátua transmite força e domínio, como se poderia esperar de uma homenagem prestada pela região onde Alexandre nasceu. O conjunto completa-se com um baixo relevo alusivo à batalha de Issus, em 333 a. C., em que Alexandre venceu o rei da Pérsia, Dario.


O conjunto escultórico de Alexandre o Grande
Percebemos que toda esta zona moderna, desde a Praça Aristóteles até à estátua de Alexandre, deriva de uma vontade expressa do poder grego em criar uma ligação entre o presente e um passado heróico, passando por cima de muitos séculos em que a maioria da população era composta por turcos e judeus. Mas os turcos foram expulsos no início do século XX, quando da ocupação grega. E os judeus foram exterminados na 2.ª Guerra Mundial, quando da ocupação nazi. São os fantasmas de que fala Mazower e de que restam poucas memórias na cidade.
Vamos procurá-los no velho Mercado Modiano, mas o que encontramos de mais interessante são as esponjas naturais, apanhadas a 50 metros de profundidade, ali no Mar Egeu.

Alexandre

Ainda nos faltava uma visita... Apanhámos o autocarro número 23 para a acrópole de Thessaloniki, onde se ergue a antiga fortificação. Do cimo das muralhas, a vista sobre a cidade e o Golfo Termaico é deslumbrante! A fortificação propriamente dita é bastante grande e tem algumas torres e portas muito bem conservadas, mas precisa de cuidados... Embora construída pelos romanos, foi muito reforçada pelos bizantinos e pelos turcos. 



As muralhas da fortaleza 

Música grega na fortaleza

No final do século XIX transformou-se numa prisão e essa zona, ainda visitável, é bastante triste e deprimente. As imagens e instalações fazem-nos adivinhar o sofrimento de quem ali foi preso e torturado no século XX.
De volta ao centro da cidade, preparamo-nos para o regresso a Lisboa. O autocarro para o aeroporto é a única coisa de que não fico com saudades em Salónica.


Um músico na Praça Aristóteles

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