segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Kutná Hora, a riqueza da Boémia

 

Kutná Hora, uma boa descoberta

Quando hoje descemos do pequeno comboio regional que serve a também pequena cidade checa de Kutná Hora, é difícil imaginar que estamos a chegar àquela que já foi a segunda cidade mais importante da Boémia, onde se extraía a prata que circulava por toda a Europa. Estavamos no século XIII quando se descobriu o filão de prata que enriqueceu o rei da Boémia. A moeda que ali se cunhava tinha o nome de taller, que veio a originar a palavra dólar que todos bem conhecemos... Parece que no século XIV ali se extraíam seis a sete toneladas de prata anualmente. No século XVI, a prata começou a escassear e a cidade também começou a perder a sua importância. No entanto, mantém muitos vestígios da imponência de antigamente, suficientes para tornar uma visita a Kutná Hora um passeio cheio de descobertas fascinantes.

Edifícios na zona central de Kutná Hora

A estação dos caminhos de ferro já viu melhores dias. Acumulam-se aí velhos comboios, alguns ainda do tempo da 2.ª Guerra Mundial, sem sombra de dúvida...

Velhas carruagens...

É preciso subir para o centro histórico. Durante a subida, vamos apreciando os edifícios que viram as suas fachadas com frescos serem recuperadas nos últimos anos. Encontramos cartazes que exibem o antes e o depois e percebemos que a decadência da cidade se tinha arrastado pelos anos, até à década de 1990. Também vamos encontrando restaurantes com bom aspeto e que prometem comida tradicional, e vamos já marcando um ou outro para pararmos no regresso...

Há muitos edifícios com frescos nas fachadas


No topo da colina, aguarda-nos o esplendor da grande Igreja de Santa Bárbara. Iniciada ainda no século XIV, é um belo exemplar do gótico tardio da Boémia, que só é comparável à Catedral de S. Vito, em Praga. A construção da catedral está intimamente ligada à atividade mineira da extração da prata em Kutná Hora e há imensos pormenores que relembram essa ligação. Nos frescos de uma das paredes laterais opostas ao altar-mor ainda podemos ver dois fabricantes de moedas trabalhando uma placa de prata com um cunhador.

A belíssima Catedral de Santa Bárbara

Os frescos com a representação da cunhagem das moedas

A meio da igreja, uma estátua de madeira policromada retrata um mineiro, vestido com uma túnica branca e ostentando os símbolos do seu trabalho, uma lanterna e uma ferramenta chamada stajgra. Parece-me uma bela homenagem aos mineiros que fizeram a riqueza da cidade.

A estátua do mineiro

Altares laterais da Catedral

O exterior é muito original: os três campanários da igreja fazem lembrar grandes tendas erguidas acima da floresta de pináculos góticos que a rodeiam. Infelizmente, não consegui tirar uma fotografia do conjunto, já que o acesso é feito pela rua que ladeia o vale e que é tão surpreendente que quase ofusca a vista da catedral. Chama-se rua Barborská e é uma rua pedonal rodeada de estátuas, a fazer lembrar a célebre Ponte Carlos, em Praga. Os reis e santos sucedem-se, numa rua que é quase um balcão sobre o vale, do qual se obtêm vistas magníficas.

A Rua Barborská

Outra perspetiva da Rua Barborská

Vista sobre o vale a partir da Rua Barborská

A cunhagem das moedas de prata era feita no chamado Pátio Italiano, em referência ao facto de terem sido chamados artesãos florentinos para o trabalho da cunhagem. Aí funciona agora a Câmara Municipal. Ao lado, existe um Museu da Mineração, que inclui uma visita a uma mina medieval. Deve ser muito interessante, porém, há que fazer opções e já não tive tempo de fazer essa visita.

Câmara Municipal de Kutná Hora, com a estátua de Masaryk (primeiro presidente
 da República Checa)

Nem só de memórias de riqueza vive Kutná Hora. Nos arredores da cidade (em Kutná Hora Sedlec), são as memórias do que nos espera depois da morte que são preservadas no extraordinário Ossuário de Sedlec. Para lá chegar, é preciso sair do tal pequeno comboio na penúltima estação e depois caminhar um pouco até chegar à Igreja de Todos-os-Santos. 

Coluna junto ao cemitério de Sedlec

Entrada do Ossuário de Sedlec

Mas vale a pena: o ossuário da Igreja juntou, ao longo dos séculos, os ossos de cerca de 60 000 pessoas. Sob o lema Memento Mori – Lembra-te de que morrerás – os ossos foram sendo reunidos de forma artística, de modo a formarem figuras e símbolos cristãos. É um local verdadeiramente extraordinário. A partir do arco de entrada, as fotografias são estritamente proibidas, pelo que as imagens abaixo são fotografias de postais que comprei no local.


Hoje, todo o conjunto monumental de Kutná Hora foi declarado Património da Humanidade, protegido pela UNESCO.

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Pelas ruas de Praga

 

Vista panorâmica de Praga, a partir da Ilha de Kempa

Praga é uma cidade belíssima, com um encanto muito particular. Tem um charme próprio, um pouco nostálgico. Chamam-lhe a cidade das cem cúpulas, devido às torres das igrejas e das muralhas que pontuam a paisagem urbana. Desenvolveu-se muito no final da Idade Média e, depois da destruição durante a Guerra dos Trinta Anos, renasceu mais bela do que nunca sob os Habsburgos. Teve a sorte de não sofrer grandes danos com a Segunda Guerra Mundial e hoje surge-nos com o seu encanto gótico ou barroco ou Arte Nova, fresco e genuíno.

A Catedral de São Vito, vista da entrada do Castelo


A Torre da Pólvora

Velhos frescos nas paredes do moderno Hard Rock Café

O que vemos e experienciamos não é fruto de uma reconstituição revivalista, é o original. Caminhamos nas mesmas calçadas que Frank Kafka calcorreou; subimos as mesmas íngremes escadas de madeira que Tycho Brahé subiu; sentamo-nos nos bancos da mesma praça onde Jan Huss pregou. Para mim, isto é emocionante. É como se sentisse o correr dos séculos nas minhas veias.

Caminhando com Kafka


Capela onde Mozart tocou, no Clementinum

Não é necessário visitar todos os palácios e igrejas para sentir o encanto de Praga. A beleza transbordou do interior para os exteriores. Ao passearmos pelas ruas da cidade ou ao atravessarmos as suas pontes, o nosso olhar é irresistivelmente atraído para os frescos nas paredes das casas, os relevos, as esculturas que enfeitam as frontarias ou se espalham pelo espaço urbano.

São Venceslau num edifício da Praça Velha

Relevos pelas ruas do Bairro Antigo

Estátua do Comendador, personagem da ópera Don Giovanni, de Mozart

Praga espalha-se pelas duas margens do rio Vltava, pouco antes da sua confluência com o Elba. O rio segue um percurso sinuoso pela cidade, pontuado por belas e antigas pontes. A mais conhecida é a Ponte Carlos. Reza a lenda que o Imperador Carlos IV pediu aos astrólogos para indicarem a melhor hora e dia para se iniciarem as obras e eles concluiram que o dia 9 de julho de 1357, às 5 horas e 31 minutos, seria o momento ideal, pois esse horário criaria uma sequência ascendente e descendente de números ímpares (1-3-5-7-9-7-5-3-1). E assim foi...

Torre de entrada na Ponte Carlos

Estátuas ladeiam a Ponte Carlos

Uma represa no rio Vltava

É uma ponte belíssima, ladeada por duas torres e pontuada por estátuas de reis e santos, que abençoavam aquela ligação entre o castelo e os bairros da outra margem, mais comerciais e profanos. O turismo de massas tomou conta da ponte e hoje é dificil encontrar um momento em que não esteja carregada de turistas e cheia de barraquinhas a vender todo o tipo de serviços e souvenirs.

A Ponte Carlos numa manhã de chuva


A grande roda de azenha na Ilha de Kempa

Mas há outras pontes que vale a pena atravessar e explorar com calma. Há muitos pormenores decorativos a não perder. Também vale a pena passear pelas pequenas ilhas, como a Ilha Kempa. Ainda se podem ver as grandes rodas dos moinhos de água e, ao percorrer os parques e relvados, têm-se belas vistas panorâmicas da cidade, do rio Vltava e das represas que mantinham o rio navegável.

A Ponte Svatopluk Cech tem belos pormenores arte nova

A base dos candeeiros da Ponte Svatopluk Cech

Na Ponte Legií, os candeeiros mostram trabalhos relacionados com o rio

O Imperador Carlos IV, do Sacro Império Romano Germânico, é uma figura importante da cidade e da Boémia. Além da ponte que leva o seu nome, fundou a Universidade, reconstruiu o Castelo, fundou ou reconstruiu vários mosteiros e igrejas, criou a Cidade Nova de Nové Mesto. A rua Carlos, ou Karlova, é das mais belas da cidade; cada edifício competindo pela decoração mais bela. Confesso que a minha favorita é a estátua arte nova da princesa Libuse, a lendária fundadora de Praga, rodeada de rosas.

Estátua do rei Carlos IV

Uma esquina na rua Karlova


Combate de gigantes na entrada do Palácio Real

Um dos aspetos que me fascinou em Praga foi este cuidado com o embelezamento das ruas e das frontarias dos prédios. São incontáveis os edifícios que ostentam frescos maravilhosos ou estátuas imponentes. Por vezes, são apenas percorridos por frisos florais e sinuosos, numa afirmação da Arte Nova que aqui floresceu – ou não tivesse aqui trabalhado Alfons Mucha. A Casa Municipal é o mais destacado dos edifícios Arte Nova da cidade. O interior foi decorado por Mucha mas, na fachada, destaca-se o mural de mosaico “Homenagem a Praga”, de Karel Spillar.

A fachada da Casa Municipal


Homenagem à Princesa Libuse

Prédio com ornamentação arte nova

Esta tradição do embelezamento do espaço urbano continua até aos dias de hoje. Há inúmeras estátuas que nos confrontam e nos fazem pensar sobre o seu significado. O conhecido escultor checo David Cerny tem três trabalhos expostos na cidade, todos fascinantes: o busto de Franz Kafka, de 42 camadas em movimento; o homem pendurado, que representa Sigmund Freud e é tão realista que levou transeuntes a ligar para a polícia; e o mais enigmático de todos, dois homens urinando para o mapa da Chéquia, no pequeno largo fronteiro ao Museu Kafka.

O busto de Kafka

O homem pendurado

Dois homens urinando para a Chéquia

Todos os passeios pelas ruas de Praga vão certamente confluir na Praça da Cidade Velha. Antiga praça do mercado, hoje o centro da cidade de Praga, tem uma tal densidade de edifícios extraordinários, da época medieval ao barroco, que se torna até difícil de abarcar. Quando ali estivemos, um mercadinho de Páscoa, cheio de ovos, coelhos e flores, ainda dificultava mais a visualização da praça no seu conjunto mas, seja qual for a perspetiva, é sempre magnífica.

A Torre da antiga Câmara Municipal

O Palácio Kinsky

Duas igrejas icónicas enquadram a praça: a Igreja de S. Nicolau, hoje dedicada a concertos, e a Igreja de Nossa Senhora de Týn, cujo interior é um pouco sombrio mas exibe os dois extraordinários campanários que, de algum modo, definem a ideia que temos da velha cidade de Praga. A igreja gótica quase desaparece atrás de uma colunata românica, o que torna a entrada um pouco difícil de encontrar.

O perfil inconfundível de Nossa Senhora de Tyn

Dentro da Igreja de S. Nicolau

À volta da praça, alinham-se os palácios barrocos, com belas fachadas adornadas por baixos relevos, frescos e estuques elaborados, como o Palácio Golz-Kinsky. Vale a pena percorrer a praça com calma e perder os olhos pelos pormenores decorativos. No meio da praça ergue-se o enorme monumento a Jan Huss, o reformador religioso acusado de heresia e morto em 1415. Este memorial foi inaugurado em 1915, no 500.º aniversário da sua morte.

Monumento a Jan Huss. À esquerda vê-se a Igreja de S. Nicolau

A estrela da Praça Velha, porém, é o Relógio Astronómico colocado na parede exterior da antiga Câmara Municipal. Data do século XV e, portanto, ainda encontramos a Terra firmemente fixada no centro do sistema solar. Está dividido em três patamares: o de baixo, é o calendário; o do centro representa as órbitas do Sol e da Lua ao redor da Terra assim como os signos do zodíaco; e a parte de cima apresenta a procissão dos apóstolos, que rodam por uma portinhola de cada vez que o relógio bate as horas. Há sempre uma multidão na praça fronteira, ansiosa por filmar ou fotografar a procissão dos apóstolos. Pessoalmente, acho mais interessante o relógio astronómico propriamente dito. Através dos seus belos desenhos e cores, mostra-nos como era a visão do mundo no século XV e isso já não é pouca coisa.

O relógio astronómico da Praça Velha


quinta-feira, 19 de junho de 2025

Um passeio pela Antrim Coast

 

A costa perto de Portrush

A Antrim Coast é a continuação da costa atlântica irlandesa, já do lado do Reino Unido, mas é bastante diferente da Wild Atlantic Way, do lado irlandês. Deixamos para trás as costas recortadas, batidas pelo vento e pela chuva, e entramos nas costas mais amenas e luminosas do chamado Mar da Irlanda. Uma espécie de Oceano Atlântico domesticado...

A pequena cidade de Portrush

Gostaríamos de ter metido o nariz em todas as falésias, enseadas e terreolas da costa irlandesa, mas não é possível. Uma das coisas mais difíceis no planeamento de uma viagem é aprender a fazer opções. Nunca se consegue visitar tudo, abranger tudo o que pode valer a pena visitar. Há que decidir por uns locais em desfavor de outros, aprender a deixar cair pontos de passagem e alterar planos iniciais, fazer e refazer os itinerários. E depois, cumprir o percurso sem dores de alma. Ficam sempre coisas por fazer e lugares por visitar; talvez numa próxima vida...

Pela costa...

Seguimos então novamente para a costa, a partir de Derry (ou Londonderry...). O nosso primeiro ponto de paragem previsto era a obra de um excêntrico bispo do século XVIII, Frederick Hervey, conde de Bristol e bispo de Derry, um homem culto e viajado mas bastante peculiar. Resolveu construir uma residência no seu domínio de Downhill, junto ao atlântico, que junta umas muralhas de aparência medieval aos edifícios de clara influência italiana. Hoje, a residência do bispo está em ruínas, depois de um incêndio no século XIX e da sua utilização pela RAF na Segunda Guerra Mundial. Mas ainda vale um passeio pelas ruínas e pelo domínio circundante.

O domínio de Downhill, entre torres medievais...

... e influências italianas
No entanto, o ponto mais atraente é o pequeno templo, chamado Mussenden Temple, construído mesmo à beira da falésia e que se destinava a abrigar a biblioteca do conde bispo. Construído à imagem do templo de Vesta, em Roma, é uma imagem inesperada e de grande beleza cénica na costa norte atlântica. Hoje, todo o conjunto faz parte do National Trust.

Mussenden Temple...

... mesmo à beira da falésia

Seguimos para Portrush e depois uma paragem imprescindível: a destilaria da Bushmills. Há quem diga que é o melhor whisky do mundo, não sei, não me atrevo a essas apreciações, mas a destilaria é impressionante.

Entrada da destilaria da Bushmills

As pipas estão prontas para a entrega

O ponto mais icónico da Antrim Coast é, sem dúvida, a chamada Calçada dos Gigantes. Como tem multidões de visitantes é mesmo aconselhável comprar bilhetes com antecedência. Com os nossos bilhetes na mão, estacionámos o carro com facilidade e entrámos na hora certa. Temia que o elevado número de pessoas me diminuísse a capacidade de apreciação do local, mas como o percurso é relativamente extenso isso não aconteceu. Os visitantes vão andando e vão-se espalhando enquanto exploram aquelas formações rochosas tão peculiares.

O percurso da Giants Causeway começa aqui

A Calçada dos Gigantes é uma formação rochosa de colunas de basalto hexagonais (cerca de 40 000) que resultaram da erupção de lavas vulcânicas, há milhões de anos. Mas a imaginação popular não podia ficar satisfeita com esta vulgar explicação científica. A lenda atribui a sua construção a um gigante, Finn McCool, que queria construir um caminho até à Escócia, para lutar com o gigante escocês Benandonner. A partir desta base, há várias versões, mais ou menos elaboradas, mas todas terminam com a fuga do gigante escocês, que teria perseguido Finn de volta à Irlanda. Na sua fuga, destruiu a calçada e, por isso, o caminho de pedras que teria ligado a costa norte irlandesa à costa oeste da Escócia (hoje a caverna de Fingal, na pequena ilha de Staffa) ficou interrompido.

As estranhas formações basálticas


Todas estas histórias, assim como outras bem mais científicas, nos são contadas no magnífico Centro de Interpretação da Giants Causeway. A história dos dois gigantes é contada em desenhos animados, num écran gigante. O público alvo são as crianças mas também havia muitos adultos (como eu...) sentados nos puffs, deliciados com as histórias! Há muitas coisas interessantes para comprar, souvenirs de um local único!

Há quem veja o camelo Humphrey deitado nas formações rochosas, depois de
transportar o gigante Finn de regresso a casa ...

Apesar da multidão que calcorreia a estrada que ladeia as formações rochosas, o caminho faz-se muito bem e vamos apreciando as peculiaridades do local. Há um autocarro que faz o percurso de ida e volta mas, sinceramente, acho que se perde muito! À exceção de problemas de saúde ou um tempo particularmente inclemente, não aconselho!

Ao longo do caminho...

Continuamos pela Causeway Coastal Route até Larne. Não tendo a espetacularidade da costa atlântica irlandesa, é uma estrada muito bonita, sempre à beira mar, entre campos agrícolas e altas falésias.

Pela Causeway Coastal Route...



Em Larne deixamos a costa e rumamos a Belfast. Aí as histórias são outras e bem mais violentas, mas já contei algumas delas noutro post, aqui.