segunda-feira, 10 de abril de 2017

Livros e Viagens - Todos os Caminhos estão Abertos




Annemarie Schwarzenbach foi uma jovem, nascida na Suiça, que nos anos 30 fez uma coisa muito pouco comum: Meteu-se no carro que o pai lhe tinha oferecido e partiu, com uma amiga fotógrafa, para o Médio Oriente, passando mais de um ano no Afeganistão. Annemarie queria ser jornalista e escritora; e muitos dos textos que estão neste livro foram recolhidos de jornais e revistas onde ela publicou as suas impressões de viagem. 
Essas impressões são interessantes, desde logo por ser a visão de uma mulher ocidental, livre de muitos preconceitos e estereótipos, sobre uma sociedade onde as mulheres não tinham, já naquela altura, visibilidade no espaço público. Há mesmo um capítulo intitulado "As mulheres de Cabul".

Foi em Cabul, no hospital dos homens, que conheci essa mulher. (...) Trazia um "tchadri", esse espesso véu cinzento que cobre a cabeça como um gorro e cai em longas pregas por cima dos ombros e até aos pés, dissimulando completamente a mulher afegã. (...) Porque todas as afegãs se assemelham, tanto nos bazares, nas ruas poeirentas das cidades e das aldeias como nos jardins fechados das casas particulares. Sabia somente que os "tchadri" das judias são negros, que as afegãs os usam cinzentos ou azuis-claros e há decerto outras diferenças ainda: sob a orla do véu aparecem as pontas reviradas dos sapatos das camponesas, os tacões gastos das pobres, as sandálias de veludo bordado das mulheres ricas. Gostaríamos muito de ver um rosto, olhos vivos, uma bela boca, um sorriso, mas não podemos fazer mais do que assistir à passagem furtiva das grades que os escondem, sabendo,ao mesmo tempo, que estas criaturas amedrontadas e desamparadas não veem suficientemente bem para evitar os camelos vacilantes, os cavalos tilitantes de guizos dos "gadi", os homens que deambulam com jovial desenvoltura...

Mas a sua visão abarca muito mais e ela apaixona-se pelas largas paisagens varridas pelo vento e definidas pelas altas montanhas cobertas de neves eternas, assim como por um povo afável e hospitaleiro. Observa as manifestações de fé, nas mesquitas e nos túmulos dos santos sufis e come com os aldeãos. 

Deixámos Meched para trás. Esqueçamos a cidade, as suas ruas novas, traçadas a régua e esquadro, e as estreitas ruelas cobertas do bazar (...) Esqueçamos o azul imperecível da mesquita de Goharshad, o calor acabrunhante nos pátios que parecem ressoar numa harmonia de cores e de formas. Esqueçamos a obscuridade e o luxo dos espelhos no interior do santuário, os gemidos e as lágrimas de peregrinos descarnados, esses xiitas vindos de todos os cantos da Ásia e que sonharam, durante dezenas de anos, beijar as barras do sarcófago. Atravessaram o deserto e sofreram as piores fadigas para poderem pôr os seus pés descalços neste chão de mármore e verem abrir-se as catorze portas de prata e as duas portas de ouro. Ajoelham-se então entre soluços, agarram-se com gritos roucos de exaustão e de alegria histérica às barras de ferro do outro lado das quais, no escuro, repousa o imane, no meio de tapetes modernos, de turbantes, de oferendas votivas e de textos sagrados. Lá fora, a toda a volta da espaçosa mesquita, os artesãos - caldeireiros e ourives, correeiros e alfaiates - trabalham em lojas minúsculas que parecem gaiolas (...) Esqueçamos a cidade.

Por vezes, interroga-se sobre o que faz ali, tão longe de uma Europa já em guerra, cujos ecos ela vai apanhando. Quando regressa, pela India e o Canal do Suez, é já com estranheza que ela olha para esse mundo ocidentalizado e organizado por regras que não lhe dizem muito.

Estamos em novembro, a violência do verão asiático varreu o país e o eco da guerra distante não se detém na fronteira montanhosa do Afeganistão. Quanto mais escassas são as notícias, quanto mais rara e imprevisível se torna a chegada do correio vindo da Índia, mais cresce a inquietação...

Atormentada e apaixonada, Annemarie mostra-nos um mundo que já não existe, desfeito pelas sucessivas invasões e pelo fanatismo religioso. Mas fica um testemunho do que era essa região, hoje marcada apenas na nossa imaginação por imagens sombrias de palcos de guerra.

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