sábado, 22 de novembro de 2025

“Maltratada e alegre, ruidosa e dolorida”, assim é Havana

 


Estas palavras não são minhas, são de Leonardo Padura, um escritor cubano que eu sigo e leio há muitos anos e que me familiarizou com os ambientes habaneros. Mesmo assim, as leituras raramente nos preparam para a realidade.

José Martí, o herói da independência cubana, na Plaza 13 de marzo

Chegámos a Havana, ao aeroporto internacional José Martí, ao início da noite. Fomos imediatamente transportados para o passado numa cápsula do tempo. Tudo em Cuba parece ter parado nos anos 50.

O antigo palácio do governo foi transformado no Museu da Revolução
(agora em obras)

Seguimos para o centro da cidade num pequeno autocarro. À luz incerta da fraca iluminação pública, comecei a ver ruas esburacadas, pequenos prédios decrépitos e montes de lixo acumulado nas ruas. Pensei que estavamos a entrar em alguma favela. Mas não. Depois percebi que estavamos a entrar no bairro de Centro Habana. Aqui não há favelas, a pobreza está instalada no centro da cidade.

Um velho convento transformado em habitação comunal

O nosso hotel, o Hotel Inglaterra, localizado no Passeo del Prado, é um dos mais antigos e emblemáticos de Havana e os espaços foram meticulosamente restaurados, o que não obsta a que os quartos mostrem a falta de alguns confortos modernos a que já estamos habituados. Fica no epicentro da animação da capital cubana, junto ao Capitólio e ao Teatro Nacional de Havana (antigo Centro Cultural Galego). 

O Paseo del Prado

O Capitólio de Havana

Centro Cultural Galego, hoje sede do Teatro Nacional

Ao lado do Teatro Nacional, uma escultura homenageia a Dança

Nas suas esplanadas há sempre música e o dia da nossa chegada não foi exceção. Aí fomos recuperar da longa viagem e tomar os primeiros mojitos. O vocalista da pequena banda cantava antigos boleros com muita alma e uma voz suficientemente potente para ultrapassar os sucessivos apagões elétricos que pontuaram a noite.

O interior do velho Hotel Inglaterra

Cuba foi colonizada no século XVI por espanhóis e franceses. O cultivo da cana de açúcar, do tabaco e do café garantiu aos colonos uma grande prosperidade, baseada no trabalho escravo. Depois da independência, a proximidade americana trouxe outro tipo de prosperidade, baseada no lazer, na corrupção dos gangsters, nos casinos. É a época de ouro da cultura cubana, os anos 50, que eles replicam sempre, principalmente na música. As rumbas e mambos inundam as ruas, transbordando das esplanadas e bares. Compay Segundo e Benny Moré são as grandes referências. O grande espetáculo musical de Los Legendarios del Guajirito é uma homenagem ao Buena Vista Social Clube e ao esplendor dos anos 50.

Homenagem ao Buena Vista Social Club

Castillo de la Real Fuerza, uma das primeiras fortalezas

A cidade de Havana foi logo de início rodeada por fortalezas, destinadas a protegerem a cidade de corsários e piratas. Do alto da fortaleza dos Três Reis do Morro, avista-se a cidade no seu esplendor, a Pérola do Caribe, como era chamada. 

La Habana, vista do Castillo de los Tres Reyes del Morro

Junto à Fortaleza, o Cristo de Havana continua a abençoar a cidade

A grande avenida marginal com o seu paredão, o Malecón, delimita a cidade face ao mar. Ao longo do Malécon, os belos edifícios, hotéis e palacetes, falam de uma prosperidade já passada, mas a beleza continua lá.

A marginal do Malecón

Velhos edifícios ao longo do Malecón

O Castillo de los tres Reyes del Morro visto do Malecón

A Primavera numa esquina do Malecón

O centro histórico da cidade, Habana Vieja como é chamada, foi declarado Património da Humanidade em 1982. A UNESCO financiou e ajudou a restaurar esse conjunto de praças e fortalezas que formou o núcleo da cidade colonial, junto à baía de Havana. Inclui quatro belas praças, a praça da Catedral, a Plaza de Armas, a Plaza de San Francisco de Asís e a Plaza Vieja. Hoje, essa zona da cidade mostra igrejas, antigas casas coloniais, hotéis de charme e galerias de arte. É uma zona elegante e belíssima, que convive bem com a atmosfera ruidosa dos vendedores de rua. Em todo o lado há gente a tentar vender qualquer coisa, desde fritos a fruta fresca ou a medicamentos que têm de ser comprados no mercado negro, porque as farmácias estão vazias.

A velha catedral de Havana

A praça da Catedral, com o Museu de Arte Colonial

Praça de São Francisco de Assis

Entrada de um dos edifícios da Plaza de Armas

Rodeada de restaurantes, a Plaza Vieja

Outra perspetiva da Plaza Vieja

A cidade velha é também das zonas mais populosas. Os velhos edifícios, com um alto pé direito para fazer circular o ar, foram divididos e subdivididos em pequenos cubículos, e foram criados andares intermédios, em madeira, de modo a acomodar mais gente. Continuam a ser chamados de solares e aí, nos pátios centrais, juntavam-se desde o início do século XX os seus habitantes, ocupando os seus domingos a tocar e a cantar. Parece que aqui, nos pátios dos solares, germinaram muitos dos ritmos que marcam a música cubana.


O interior de um solar

Nas ruas desta Habana Vieja, esburacadas e pejadas de gente, encontram-se muitos bares, alguns celebrizados por pessoas como Ernest Heminway, que viveu em Havana durante vários anos; é o caso da Bodeguita del Medio, ou do Bar La Floridita... Também se encontram os chamados paladares que são restaurantes informais, muitas vezes geridos de forma familiar. Há outros restaurantes, certificados pelo turismo cubano e evidentemente mais caros...


O célebre bar La Floridita

Abundam as lojas. Há-as de três tipos. Existem as lojas formais, oficiais, com preços subsidiados e às quais se acede com uma caderneta de racionamento. Vimos várias, invariavelmente de prateleiras vazias. Depois, existem as lojas informais, onde os pequenos produtores vêm vender os seus produtos, ou que vendem águas e refrigerantes, ou outros produtos de pequeno valor. Por fim, existem as lojas oficiais, bem recheadas de produtos, tanto de mercearia como de higiene, mas onde só se pode comprar com dólares ou euros, o que obriga os cubanos a uma verdadeira ginástica financeira para aí poderem aceder.

Loja do estado... de prateleiras vazias

Pequeno mercado informal em Habana Vieja

Embaixada de Espanha: à porta, longas filas de pessoas tentam diariamente obter um
visto ou uma declaração de nacionalidade 

Confuso? Não para os habaneros, que aprenderam a gerir todas estas camadas. São resilientes , compram, vendem, trabalham em tudo o que aparece, fazem biscates, desenrascam-se! A prioridade é ir sobrevivendo e, se sobrar para uns mojitos, melhor! Ouvir uns boleros, dançar umas rumbas! E sorrir, sempre! Talvez a alma cubana também devesse ser património da humanidade...

Rumbas na esplanada do bar La Francesa