segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Uma Irlanda dividida

 

Entrada em West Belfast

A pequena ilha da Irlanda foi, durante séculos, uma colónia da vizinha Grã-Bretanha. As marcas ficaram, na cultura, nos ressentimentos. Mesmo quando, depois de muitas tentativas de insurreição e de independência duramente reprimidas, os irlandeses conseguiram a sua independência, a jovem república viu-se obrigada a ceder perante os interesses britânicos e a abrir mão do seu nordeste, que se manteve dentro do Reino Unido. É o chamado Ulster, embora não corresponda exatamente ao antigo reino de Ulster.

O apelo à união de toda a Irlanda

Memorial a todos os resistentes ao domínio britânico

É estranho passar a fronteira entre a República da Irlanda e o Ulster britânico. O Brexit trouxe para ali a fronteira da própria União Europeia, mas quase não damos por ela. Passamos um pequeno rio, vindos de Donegal e, repentinamente, entramos em Strabane no meio de uma profusão de bandeiras britânicas e da Irlanda do Norte. Pronto, deixamos o conforto dos euros e dos quilómetros para entrar na confusão das libras e das milhas.

Vislumbres de Donegal



Mas esta fronteira é muito mais profunda do que o que se vê à primeira vista. A divisão política consubstanciou-se numa divisão religiosa e contaminou tudo. Os ingleses dominantes e senhores das terras eram protestantes enquanto os irlandeses, pobres, dominados e sem direitos, eram católicos. Hoje, de um modo que para nós é até difícil de compreender, essa divisão entre católicos e protestantes continua a marcar a vida da Irlanda do Norte. Em Belfast, os bairros católicos e protestantes estão separados por um muro, com portões que se fecham às 19 horas para só reabrirem às 7h do dia seguinte.

Um dos portões que é fechado durante a noite, separando os setores católico e protestante

Entrada para as muralhas de Derry

A cidade de Derry, a que os ingleses dão o nome de Londonderry, conta-nos a história. É útil começar por visitar o magnífico edifício da Câmara Municipal, implantado bem no centro da cidade, o Guild Hall. É a rainha Vitória que nos recebe, na sua estátua protocolar, mas a história começa bem antes e é contada nas várias salas do piso térreo. Exposições muito bem elaboradas levam-nos à conquista da Irlanda no século XVI e, depois, à instalação da Ulster Plantation, o sistema de exploração económica implantado pelos ingleses na ilha.

O Guild Hall

O Salão Solene...

... onde os vitrais contam a história do Ulster

Depois, há que percorrer as muralhas da cidade. Podem-se percorrer a pé e vamo-nos apercebendo pelos placards explicativos do crescimento da cidade e de quem eram estes colonos ingleses e escoceses que ali se foram entrincheirar. Esta relação entre cidadãos de primeira e cidadãos de segunda classe, os descendentes dos colonos e donos das terras e os rendeiros pobres, manteve-se até explodir nos “troubles” dos anos 60 do século XX.

Dentro das muralhas, os edifícios dos colonos ingleses e escoceses

A cidade de Derry vista das muralhas
Mural que recorda a luta dos irlandeses pelos direitos civis

Os “troubles” começaram em 1968, com marchas pelos direitos cívicos violentamente reprimidas pelo exército britânico. Está tudo no Bogside, o bairro católico da cidade. Murais e fotografias que recordam os momentos mais dramáticos dos confrontos, memoriais aos que morreram pelo sonho de uma Irlanda autónoma, em que todos tivessem os mesmos direitos. Direitos tão simples como o direito de voto, o direito de aceder a qualquer emprego ou de estudar em qualquer universidade. Direitos iguais para católicos e protestantes, em suma.

Alguns dos extraordinários murais do Bogside



Todo este conflito, tão sofrido, está ainda mais presente em Belfast. O Dave, que nos acompanhou na descoberta do centro da idade, avisou-nos: “Não se deixem enganar! Para entenderem Belfast, têm de ir aos bairros periféricos! Está tudo como em 1998, quando dos Acordos de Sexta-feira Santa!”

Entrada no bairro católico de Derry


Memorial aos mortos nos troubles

Pela nossa idade, o Dave viveu aqueles tempos terríveis e partilhou connosco algumas histórias. Levou-nos ao Hotel Europa, o único hotel aberto na cidade nos anos 70, que foi atacado à bomba 34 vezes pelo IRA. Católico e unionista, contou-nos que estava pronto para emigrar com a mulher e os quatro filhos, nas vésperas dos acordos de paz. Mas partilhou também connosco as suas esperanças de que a União de toda a Irlanda já não estivesse muito longínqua. Disse-nos, contente, que agora o chefe do governo eleito do Ulster era um católico. Não achou importante dizer se era socialista ou liberal ou qualquer outra característica; apenas o mais relevante, era católico.

Apelo à luta do IRA (Irish Republican Army)

Depois do almoço, rumámos a Falls Road, a avenida que separa os setores católicos dos setores protestantes. Rapidamente começamos a encontrar os memoriais que recordam os momentos mais violentos das lutas. Os murais glorificam os momentos de luta e os mártires que caíram mortos em atentados, ou morreram em greves de fome ou pela ação repressiva das tropas britânicas. Vêem-se muitas bandeiras da Palestina e desenhos de apoio ao povo palestiniano, numa clara identificação de lutas e aspirações.

Alguns dos murais mais icónicos de Belfast


Virando para a Northamberland Street, encontramos um dos portões que, à noite, separa o setor protestante do setor católico. De dia está aberto e avançamos por lá, cheios de curiosidade para ver se o ambiente é idêntico no setor protestante. Aqui, em Shankill Road, os murais exaltam a união dos britânicos e vêem-se desenhos e bandeiras de Israel. Uma senhora, no pequeno jardim da sua casa, chama-nos e faz queixas: “Passam aqui e cospem nos murais, acha bem?” Não, claro que não acho bem. Então, concorda com o muro e com o portão? “Sim, senão eles vinham aqui provocar-nos, com bandeiras!”

Murais num dos bairros protestantes de Belfast


Voltámos para o setor católico. Junto ao portão, o grande Mural da Paz parece entalado entre tantas mensagens de ódio e desconfiança.

O Mural da Paz

Continuámos a descer Falls Road e continuámos a descobrir os murais e os pequenos jardins memoriais. Junto a um ruidoso Sportsbar, parámos para consultar o nosso mapa e fomos abordados por dois homens que soubemos depois serem pai e filho. Quando falámos nos murais, a conversa soltou-se. O homem mais velho era mais ressentido. Afinal, o irmão tinha sido morto na esquina, mesmo ali em frente. Perguntámos se havia mistura das duas populações. Ele respondeu rápido: “Se eles cá vierem, mandamo-los para casa! Se nós lá formos, cortam-nos o pescoço!” Será? Sempre o nós e o eles, os dois lados de uma trincheira eterna.

Mural que recorda um dos episódios mais sangrentos dos troubles

Cartaz dos lealistas britânicos no setor protestante de Derry / Londonderry

Memorial aos mortos do IRA em Belfast

Aconselharam-nos a visitar um memorial que havia ao fim de uma das ruas laterais. De caminho, valia a pena visitar uma igreja católica que tinha uma cripta onde todos, católicos e protestantes, se refugiavam quando havia bombardeamentos alemães, na Segunda Guerra Mundial. Face a uma ameaça mais forte damos as mãos? Ou a trégua é apenas pontual?

A Igreja de Saint Clonard...

... com um memorial ao fim da rua

Não pudemos deixar de reparar que muitos dos que por ali estavam vestiam uma camisola verde e branca, do Celtic. Eram mesmo adeptos do Celtic de Glasgow? Uma equipa escocesa? Ah sim, responderam-nos, porque o Celtic de Glasgow foi fundado no século XIX por um padre católico irlandês. Nessa noite, havia uma grande festa do Celtic no Falls Park. Já no hotel, vimos imagens do festival, onde uma enorme multidão verde e branca entoava em conjunto as velhas canções irlandesas. Mais palavras para quê?

Identificação dos locais de conflito em Falls Road

Equipamento desportivo com motivos patrióticos

As feridas provocadas por este conflito continuam abertas e são muito evidentes em Belfast. Mas também se encontram as suas cicatrizes nas zonas rurais. Parámos junto ao memorial de Kingsmill, à beira de uma estrada estreita, no meio de campos e pastagens. Aí, recorda-se um episódio negro, quando em 1976 um grupo do IRA deteve uma carrinha de trabalhadores e chacinou os dez protestantes. Estas feridas continuam a sangrar, são memórias vivas de um conflito complexo, onde não existiram santos de um lado e pecadores do outro.

O memorial de Kingsmill

Mural de entrada em Sandy Row (Belfast), bairro protestante, sede da Liga de Orange

Hoje, o centro de Belfast está cheio de turistas que se alojam nos muitos hotéis disponíveis. Os habitantes bendizem o turismo que trouxe emprego e prosperidade. Os prédios crescem, cobertos de painéis de vidro que já não receiam as bombas do IRA. Porém, mais longe do centro, encontram-se muitas casas vazias e um certo ar de degradação que não se vê no resto da Irlanda. Vai levar tempo...

O Hotel Europa recuperado

O belíssimo edifício da Câmara Municipal de Belfast

Memorial aos mortos no naufrágio do Titanic

No porto de Belfast, à vista dos estaleiros onde foi construído o inafundável Titanic – que afinal se afundou – foi colocado o Big Fish, o Salmão da Sabedoria. Coberto de imagens rememorativas umas, dolorosas outras, foi “recheado” com objetos, jornais, imagens, do ano em que ali foi colocado. A ideia é abrir apenas daqui a cem anos. Será que nessa altura já existe uma Irlanda diferente, em paz consigo própria? E esses objetos poderão ir para um museu e ficarem definitivamente para a História?

O Salmão da Sabedoria

Pormenor do Big Fish




quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Os pubs irlandeses

 

Uma rua de pubs no animado Latin Quarter, em Galway

Se algum dia voltar a Dublin, hei-de ir à Christ Church e à National Gallery. Sei que valeria mesmo a pena, e até teria tido tempo para isso se a minha prioridade não estivesse noutros sítios, os pubs. Saí de Lisboa com uma lista dos pubs que não podia deixar de visitar. Era uma lista bastante grande, feita com empenho depois de consultas minuciosas a vários artigos e sites na internet. Tenho noção que uma lista é um rol de preferências muito pessoal e, por isso, nenhuma é perfeita. Mas era um começo de exploração.

Temple Bar, o bairro mais icónico de Dublin

Os belos vitrais do "The Stag's Head"

Logo que chegámos a Dublin e largámos as malas no hotel, iniciámos a exploração da área circundante e encontrámos o “O’Donoghues”, onde um pátio animado prometia o relax perfeito depois da viagem. Entre as primeiras cervejas, abri o meu caderninho de viagem e a minha lista de pubs. Eu ainda não sabia mas não há nada que os irlandeses mais gostem do que um pretexto para uma boa conversa. Na mesa ao lado, três jovens professoras repararam na minha lista de pubs e durante a hora seguinte deram-nos todas as dicas para uma boa Rota dos Pubs. Risquei alguns, declaradamente muito turísticos e acrescentei outros, interessantes pelo ambiente ou pela qualidade e variedade da cerveja. Na verdade, a minha lista aumentou bastante...

O pátio interior do “O’Donoghues"

Variedade de cervejas no "Davy Byrnes"

Creio não errar se garantir que, durante toda a nossa viagem pela Irlanda, não passou um dia sem que entrássemos num pub, por vezes em dois ou três. Acho que os pubs caracterizam tanto a cultura irlandesa como as tradições célticas e o ódio aos ingleses. Têm sempre um ambiente intimista, marcado pelas madeiras escuras, os sofás de pele, os candeeiros de luzes veladas. Há salas, saletas, recantos. Nas épocas em que as mulheres eram em geral discriminadas no espaço público, elas tinham o seu lugar nos pubs, nos “snugs” com acesso direto ao balcão. A seleção de bebidas, desde as cervejas aos whiskeys, é vasta... E a conversa é muita!

O "Gielty's" orgulha-se de ser o pub mais ocidental da Europa

O "Toners" é um dos pubs mais antigos e tradicionais

"Hairy Lemon", o pub com mais saletas e recantos...

Os nomes são deliciosos e dizem muito do humor irlandês, como o “Thirsty Goat”, o “Dirty Onion” ou o "Hairy Lemon", neste caso uma homenagem bem humorada a uma figura conhecida da Dublin do início do século XX, um vagabundo que apanhava cães na rua e cujo tom da pele, amarelo a lembrar o limão, denuncia um fígado que já depurou demasiadas bebidas alcoólicas...

E o prémio do nome mais original vai para...

Dizem que há mais de duzentos pubs em Dublin, já descontando os que fecharam durante a pandemia e não reabriram. Alguns já ali estão desde o século XVIII. E vão-se multiplicando, por toda a Irlanda. Não há localidade que não tenha o seu pub. Mesmo nas zonas rurais, eles são o local de reunião da comunidade ao fim do dia. Entrámos em vários, ao longo da viagem. Havia sempre uma televisão a passar provas desportivas ou corridas de cavalos. E muita cerveja a correr. Há sempre curiosidade em relação aos forasteiros e a conversa é fácil (embora a pronúncia nem sempre seja fácil de decifrar).

Para uma cerveja especial, uma torneira especial...

The Duke of York, um espaço animado numa cidade dividida

Há alguns pubs com muita fama, como o Toners, The Church, The Stag’s Head, em Dublin, ou o célebre The Crown, em Belfast. Não foram os meus preferidos. São percorridos por procissões de turistas, de cabeça no ar e telemóvel em punho. Tiram as suas fotografias e voltam a sair. Entopem o espaço e não deixam nada em troca, exceto uns euros pagos por uma cerveja apressada.

O belo interior do "The Crown"

"The Church" numa antiga igreja

Ao contrário do que o nome parece indicar, The Temple Bar não é um pub, mas um bairro de Dublin, no centro histórico da cidade. As ruas estreitas estão cheias de bares e restaurantes, as esplanadas estão apinhadas (a não ser que chova...) e o ambiente é muito animado. Aí se encontram alguns dos mais famosos pubs da cidade, mas são em geral mais turísticos e mais caros do que se sairmos do centro.

"The Auld Dubliner" provavelmente o pub mais fotografado de Temple Bar

Todos os pubs têm imensas coisas penduradas nas paredes. Podem ser cartazes de provas desportivas ou de marcas de cerveja. Podem retratar ídolos do cinema, grupos musicais dos anos 50, velhos cartazes publicitários ou turísticos. São uma espécie de museus da cultura popular e podemos passar muito tempo a apreciar aquelas miscelâneas.

Uma parede no “O’Donoghues"


Um pub em Dingle

Algumas frases aparecem repetidamente, como “There are no strangers here; only friends you haven’t yet met”, atribuída a William Butler Yeats, o grande poeta irlândes. De resto, os grandes escritores e poetas nunca estão longe. Yeats ou James Joyce aparecem frequentemente, em velhas fotografias ou arranjos gráficos mais atuais. Outra referência constante é a da luta pela independência da Irlanda. Encontram-se por todo o lado reproduções fotográficas dos heróis do Levantamento da Páscoa de 1916 e da Declaração de Independência. Até numa simples loja de fish and chips...

James Joyce no Temple Bar

E a música, a música é uma constante. Nos locais mais turísticos, tocam-se baladas irlandesas e, por vezes, até é possível assistir a espetáculos de dança irlandesa. Para mim, é tão emocionante ouvir música tradicional interpretada por um dueto de cordas em Killarney, como ouvir a jovem Catrina cantar Cranberries no “Crowes Nest” em Cong.

Sempre a música...

Afinal, quais foram os meus pubs preferidos? Da minha enorme lista, só consegui ir talvez a dez por cento... Mas entrei por acaso em muitos outros e alguns ficaram-me no coração. E no estômago, também...

O "Morning Star" em Belfast

A minha lista de preferências vale o que vale, como todas as outras. Mas não pode lá faltar o “Doheny & Nesbitt” em Dublin, pela simpatia, pela música e pelo “Irish stew”; o “Duke of York” em Belfast, pela decoração e animação;  e, claro, o “Hairy Lemon”, pelo nome e pelas saletas e recantos que não consegui acabar de explorar.

"The Duke of York" em Belfast

Quando um dia voltar a Dublin, não posso perder a National Gallery. Mas também tenho de ir ao “John Kavanagh’s” (The Gravediggers). Dizem que lá se bebe a melhor Guinness da cidade!

Goodbye, Dublin. Enjoy!