segunda-feira, 22 de julho de 2024

A ocidente e a oriente do Nilo – Os túmulos

 

A viagem para o além (túmulo de Ramsés IX)

Se virarmos as costas a Amon e à sua festa de renovação da vida e cruzarmos o Nilo, entramos na zona da morte e dos túmulos, no Vale dos Reis.

Sala do sarcófago, de Ramsés I

O tecto de uma das salas do túmulo de Seti I

Cruzemos então o Nilo para a sua margem ocidental. Passada a estreita faixa verdejante entramos no deserto. O calor é tórrido. Estamos a meio da manhã e já passamos os 40 graus centígrados quando chegamos ao Vale dos Reis.

A paisagem desértica

A entrada no Vale dos Reis

O panorama não é muito animador. Na encosta branca, faiscante de sol e calor, abrem-se uns portões retangulares: são as entradas para os túmulos reais. Estão cobertas por uma espécie de toldos e todas exibem um cartaz à entrada que identifica o faraó que aí está sepultado e dá algumas informações sobre a organização interna do túmulo. Foram aqui sepultados quase todos os faraós do Império Novo, a partir de Tutmósis I, mas pensa-se que nem todos os túmulos foram já descobertos.

Os cartazes explicativos

Pilares na entrada do túmulo de Ramsés III

Estes túmulos não eram para ser visitados, portanto as entradas eram tapadas depois da procissão funerária. Sabe-se que, nos séculos IV e V, alguns túmulos serviram de habitação aos eremitas cristãos. Depois, com a islamização do Egito no século VII, o Vale dos Reis caiu no esquecimento, até às expedições científicas europeias no século XIX.

Decoração das paredes (túmulo de Ramsés III)


Decoração das paredes (túmulo de Seti I)

O fascínio com a civilização faraónica estava então no auge e todos conhecemos as histórias ligadas à descoberta do túmulo de Tutankhamon pelo egiptólogo britânico Howard Carter, em 1922. O túmulo estava intacto e, pela primeira vez, apreciavam-se as riquezas que rodeavam um túmulo real. Tutankhamon tornou-se uma espécie de superstar mas, na verdade, foi um faraó menor que morreu muito novo, e o seu túmulo foi feito apressadamente. Quanto aos ricos artefactos encontrados foram transferidos para o Museu do Cairo, principalmente.

A entrada para o túmulo de Tutankhamun, o célebre KV62

Assim, eu sabia que era um dos túmulos menos interessantes do vale e, como o bilhete nos dava entrada apenas a três túmulos, descartei logo o do faraó famoso. Fiz bem, era o que tinha uma fila maior para entrar...

Inscrições nas paredes (túmulo de Ramsés III)

Gravura representando um sacrifício ritual (túmulo de Seti I)

Optámos então pelos três Ramsés disponíveis: Ramsés I, Ramsés III e Ramsés IX. Mesmo nos túmulos menos concorridos, o calor era sufocante. Mal começamos a descer a rampa que dá acesso às câmaras funerárias, o suor cobre-nos e saímos encharcados. Mas o esforço compensa: as paredes cobertas de textos e imagens que auxiliam a passagem do faraó para o mundo do além, são espantosas e fascinantes. Emerjo para o mundo exterior, no entanto, com a sensação de que todo o vapor de água que libertamos não pode ser saudável para aquelas imagens maravilhosas, realizadas e mantidas na obscuridade de uma atmosfera protegida durante tantos séculos.

Homem com pele de leopardo (túmulo de Seti I)

O faraó Ramsés III é conduzido pelos deuses Tot e Hórus

Enquanto observo as imagens de Ramsés III sendo conduzido pelos deuses, não posso deixar de me recordar das imagens do mesmo faraó no templo de Medinet-Habu, que lhe é dedicado. Aí se lembram as vitórias de Ramsés III sobre os líbios e os “povos do mar” e estão representadas cestas cheias das mãozinhas decepadas dos seus inimigos. O faraó tem muito que confessar no tribunal de Osíris...

Entrada no templo de Medinet-Habu, dedicado a Ramsés III

Ramsés III recebe os tributos dos vencidos, entre os quais os montes de mãos decepadas

Por uma pequena quantia extra, era possível visitar também o túmulo de Seti I, um dos mais ricos do Vale. Tinha pouca gente, por isso não estava tão quente e húmido e podíamos ver tudo mais à vontade. Os deuses e faraós rodeavam-nos. As paredes estavam cobertas de pinturas lindíssimas, de cores vivas, rememorando tudo o que era necessário para auxiliar o faraó na sua viagem. Todo o ambiente era de recolhimento, beleza e delicadeza, imerso numa semi-obscuridade que me fez viajar no tempo. Confesso que me senti à beira das lágrimas. Foi das experiências mais intensas desta minha viagem ao Egito.

O faraó é guiado por Tot (túmulo de Seti I)

As belas imagens da viagem para o além (túmulo de Seti I)

Além do Vale dos Reis, existem outras necrópoles no lado ocidental, nas quais foram enterrados outros reis, rainhas, familiares, altos funcionários; é o caso do Vale das Rainhas. Não o visitamos. Não é possível visitar todos os templos, túmulos, escavações arqueológicas.

Procissão ritual (túmulo de Seti I)


O faraó com os seus atributos (túmulo de Seti I)

Seguimos para o grandioso templo funerário de Hatshepsut. É imperdível! Já não estamos a falar de pirâmides ou de túmulos escavados no deserto. O local de repouso da rainha Hatshepsut, que governou com o título legítimo de faraó, é um enorme hipogeu ao qual se acede por uma ampla escadaria ladeada de esfinges. Difícil de subir devido ao calor inclemente, o esforço tem pleno retorno nas decorações naturalistas do seu interior, sombrio e fresco.

O grandioso hipogeu da rainha Hatshepsut

Uma das esfinges que ladeiam a escadaria

Hatshepsut foi uma boa governante, de acordo com os registos. Ainda governou em co-regência com o seu filho Tutmósis III, que teve a falta de delicadeza de apagar o nome da mãe das suas estátuas, quando subiu ao trono. Mas ela lá continua, com um meio sorriso nos lábios de pedra, a olhar orgulhosamente em frente.

Decorações naturalistas do interior do templo funerário 

As estátuas da rainha

Hatshepsut, tu que foste rainha, como avalias a evolução do mundo nos últimos três mil anos? Desculpa tratar-te com esta informalidade mas, aqui entre nós, o que achas da situação da mulher no Egito atual?



terça-feira, 9 de julho de 2024

A ocidente e a oriente do Nilo – Os templos

 

O Nilo visto do nosso hotel em Luxor

Para os egípcios, é desnecessário nomear o Nilo. É o único rio, não tem concorrentes ou afluentes, apenas canais. Heródoto escreveu: “O Egipto é um dom do Nilo” e, realmente, sem o Nilo não haveria Egipto, encaixado entre dois desertos. O Nilo é o criador dessa faixa de terra extraordinariamente fértil que ali permitiu o desabrochar da vida e da civilização.

À beira de um canal do Nilo

Subindo o Nilo

É fascinante subir ou descer o Nilo de barco e observar, com vagar, as suas margens que vão desfilando à nossa frente. A atividade agrícola é intensa, embora não intensiva. Os palmeirais alternam com campos de cana de açúcar. Há pequenas bombas manuais para extração da água da rega. E os burros continuam a ser um meio de transporte muito utilizado. De vez em quando, uma cabana ou um pequeno conjunto de casas de adobe. Arrumos? Habitações? Não sei, mas percebo que, se recuasse cem ou mil anos, a paisagem não seria muito diferente.

Pequenas aldeias nas margens

Os burros continuam a fazer o seu serviço

O Nilo sempre foi a referência para todos os aspetos da civilização egípcia, desde os tempos faraónicos. Definia os tempos agrícolas, definia o calendário, definia a organização social e política. Era indissociável das crenças e festividades religiosas e o curso do rio era a grande referência para o culto. Para oriente do rio, onde o sol se levantava, era a terra dos vivos e do culto aos deuses. Para ocidente do rio, onde o sol se punha, era o lado dos mortos e do mundo do além.

Fachada do templo de Kom Ombo

Olhando para o mapa do Egipto, esta referência torna-se muito nítida: na margem oriental do Nilo, o lado do Levante, sucedem-se os grandes templos, lugares de celebração da vida e da continuidade; na margem ocidental, o lado do Ocaso, é o lugar dos túmulos. Basta passar para lá da faixa verdejante das culturas para encontrar o deserto e o reino da morte, mas também da imortalidade.

Entrando em Karnac

Os carneiros de Amon


Em nenhum local isto é tão claro como em Karnac. Karnac era o grande complexo religioso do culto ao deus Amon. Os seus sacerdotes administravam todo o património de Amon, ao qual pertencia o templo de Luxor, situado na margem oriental do Nilo, assim como os recintos funerários que se localizavam ana margem ocidental do rio. Funcionava portanto como um grande centro administrativo dominado pela classe sacerdotal.

Bela gravação de Amon na parede do templo

As colunas de Karnac

Dentro do complexo

Ao longo do Império Novo, Karnac foi crescendo até se transformar numa enorme cidade-templo. Incluía vários locais de culto, caminhos processionais com santuários, palácios, instalações administrativas e armazéns.

O lago sagrado de Karnac

O escaravelho sagrado... sim, também dei sete voltas ao escaravelho...

Também existe uma mesquita no complexo de Karnac

Os faraós tutmósidas mandaram aqui construir o grande templo de Luxor, para constituir a residência sul de Amon. No decorrer da festa de Opet, Amon-Ré deslocava-se de Karnac para Luxor, a fim de realizar a sua regeneração divina.

Entrando em Luxor

Aos pés do grande faraó


Pátios interiores

A grande avenida processional por onde era transportada a barca divina com a estátua de Amon ainda hoje é impressionante. É uma avenida larga, ladeada de esfinges que guardam o caminho percorrido pelo deus. Muitas esfinges estão danificadas ou desaparecidas, mas as que ainda se mantêm de pé são muitas e garantem a grandiosidade da avenida de cerca de 2 quilómetros. Uma réplica da barca divina marca o seu espaço na avenida e eu imagino-a cheia de gente acenando ao deus que passa com flores e folhas de palmeira, cheios de temor e esperança na renovação da vida em todo o Egipto. Talvez conseguissem vislumbrar a imagem do deus. 

As esfinges da avenida processional

Réplica da barca que transportava a imagem do deus

Sabemos que cada templo possuia uma imagem escultórica do deus que aí se venerava, fosse ele Amon, representado por um carneiro, fosse Sobek, o deus-crocodilo, ou outro qualquer. Infelizmente, quase todas estas estátuas de culto se perderam com o correr do tempo, já que eram feitas com metais nobres, tendo por isso sido roubadas ou fundidas.

Imagem de Isis com o pequeno Horus ao colo 
(Novo Museu da Civilização Egípcia)

Imagem de Sobek (Museu de Kom Ombo)

Hoje, Luxor é uma cidade grande que vive muito do turismo. Fomos fazer um passeio noturno pela cidade, de charrete. A avenida processional estava iluminada e proporcionava uma bela visão. De resto, a cidade pareceu-me idêntica a qualquer bairro do Cairo, com muitas lojas, muita luz, muita gente na rua e muitos minaretes. Fuad, o rapazinho que conduzia a nossa charrete, tinha 14 anos, trazia uma túnica impecavelmente limpa e fazia o seu trabalho com seriedade: enquanto nos brindava com sorrisos, ia apontando para o que lhe parecia mais interessante e enxutava energicamente os outros miúdos que tentavam  agarrar-se à charrete para nos vender milhentas bugigangas. Garantiu-me que estava na escola e por isso ganhou umas quantas libras egípcias de gorgeta.

Fuad, o condutor da nossa charrete