quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Olhares sobre o Cairo

 

Uma esquina no Cairo antigo

O Cairo não é a capital mais antiga do Egito, mas é com certeza a mais marcante, afirmando-se desde os tempos de Saladino. E é precisamente a partir da Cidadela de Saladino que, dizem, se tem a melhor vista sobre a cidade. 

Os muros da Cidadela de Saladino

Situa-se na colina de Muqattan e aí viveram e reinaram várias gerações de califas e concubinas... É coroada pela grande mesquita de Muhamad Ali, construída no século XIX. Também lhe chamam Mesquita de Alabastro, já que esse é o revestimento das colunas e paredes que delimitam a sala principal.

A mesquita de Muhamad Ali...

... com os seus interiores totalmente forrados de alabastro

É um grande espaço aberto, iluminado por inúmeras lamparinas pendentes do teto, com o seu mihrab a indicar a direção de Meca. É bonita, sim, mas gostei mais do exterior do que do interior. O grande pátio é dominado por uma fonte de abluções ricamente trabalhada e por uma torre com um relógio, oferecida pelo rei francês Filipe Augusto quando da construção da mesquita e que nunca trabalhou...

O pátio e o relógio que nunca funcionou...

Dali, da cidadela, tenho o meu primeiro contacto real com o Cairo. A vista é privilegiada, a cidade estende-se sob os nossos olhos. Dizem que dali se conseguem ver as Pirâmides, mas isso só deve acontecer em dias muito claros e límpidos. Não era o caso. O que eu vi foi um aglomerado imenso de casas, todas da cor da areia do deserto, pontuadas pelos minaretes das mesquitas. Sobre toda a cidade pairava umanuvem baixa de calor e poluição. As elegantes torres da mesquita e universidade de Al-Azhar, fundada no século X e uma das mais importantes instituições de ensino do mundo islâmico, sobressaem do amontoado de casas. Ainda não sabia, mas iria visitá-la depois.

O Cairo visto da esplanada da Cidadela de Saladino

O Cairo é uma metrópole enorme, com cerca de 30 milhões de habitantes. Percebemos que estão a ser construídas infraestruturas para modernizar e agilizar a circulação. Percorremos e cruzamos rapidamente a cidade em vias rápidas e extensos viadutos. Para lá do centro, do Cairo histórico, estendem-se bairros desorganizados, de prédios inacabados que se ficaram pelo cimento e pelo tijolo. Os cabos de aço coroam anarquicamente todos os prédios, a par das antenas parabólicas. por vezes, as vias rápidas cruzam esses bairros e percebemos que cortaram os prédios por onde deu jeito. E as paredes interiores de quartos pintados de azul ou cor de rosa tornaram-se subitamente exteriores, contrastando com as paredes de tijolo.

Há bairros cortados pelas novas vias rápidas

Cruzamos também os cemitérios, a que me apetece mais chamar bairros dos mortos. Parecem enormes bairros de casinhas térreas encostadas umas às outras. Aí se colocam os defuntos, com em jazigos familiares. Têm um ar aprazível e arejado. Será que aí coabitam os vivos com os mortos? Garantem-me que não, agora já não é assim... Mas fica a dúvida... vi muita roupa estendida, a secar ao sol...

Vista do Cairo com cemitério...

Ao contrário de Alexandria, o Cairo é uma cidade para ver de perto. É necessário percorrer as ruelas da zona antiga para perceber o que a cidade tem de belo. O esplendor da cidade medieval, da dinastia fatímida, dos aiúbidas, aí está, desdobrando-se em torres elegantes, janelas e balcões finamente esculpidos, ornamentações inesperadas. 



Em algumas paredes, ainda se vêem os mucharabiehs de que falava Eça de Queiroz

A cada esquina, uma surpresa. A entrada para uma madrassa, escura e misteriosa. Uma mesquita, com um minarete elevando-se acima da linha desordenada dos telhados. Mil e um pormenores decorativos nas fachadas das casas ou nas entradas das ruas cobertas.




Pelo meio desta confusão magnífica, há lojas de tudo e mais alguma coisa, de cerâmicas a narguilés, com os produtos a estenderem-se pelos passeios. Algumas expõem os seus produtos com gosto, mas há outras em que a camada de pó acumulado parece ser anterior ao próprio Saladino.




Por todo o lado, muita gente. Mas não se acotovelam, não se empurram. Homens de T-shirt, mulheres de vestes escuras e compridas, muitas crianças, todos parecem ter um propósito definido, nem que seja estarem sentados num degrau à espera de qualquer coisa. As esplanadas apertadas das casas de chá enchem-se para o chá de menta.



A esplanada já está pronta...

O chá de menta

No extremo deste dédalo de ruas antigas e movimentadas, a velha mesquita e universidade de Al-Azhar chama por mim. As mulheres não entram pela porta principal da mesquita, mas podem entrar por uma porta lateral, mesmo não sendo muçulmanas. Apenas temos de cobrir a cabeça e todo o corpo, e descalçar os sapatos. Assim mo explica uma adolescente de sorriso aberto, logo após a proverbial pergunta "De onde és?", desta vez em francês. Encantada por se ver entendida e conseguir comunicar, dá-me todas as indicações necessárias. Depois da entrada, há uma sala à esquerda onde uma mulher me pode dar um traje comprido que me permita entrar no espaço sagrado. E lá vou eu, ataviada como um frade capuchinho...


A entrada da universidade

A sala principal é muito grande e está cheia de gente. Há miúdos que brincam e correm de um lado para o outro. Mas a maioria das pessoas está reunida em pequenos grupos, que me parecem de discussão e aprendizagem religiosa. Há vários grupos de mulheres, sentadas em volta de mesas; parecem ser grupos de discussão, todos encabeçados por um homem, evidentemente... Também há vários grupos de crianças, principalmente rapazinhos, sentados em círculo no chão, que recitam o Corão orientados por um catequista, chamemos-lhe assim... Como eu gostava de compreender as suas conversas, as suas perguntas e respostas!

Dentro da mesquita da universidade

Ninguém nos incomodou ou questionou. Quando quisemos, entregámos os nossos atavios e saímos. Foi com algum alívio que me vi restituída ao meu eu ocidental, de jeans e t-shirt.

Saindo das ruelas estreitas do Cairo antigo para as ruas largas e modernas da zona mais nova da cidade, o caos continua, mas agora à escala rodoviária. Não parece haver qualquer preocupação com as regras de trânsito. Os automóveis e as motoretas enchem as ruas, avançando temerariamente, sempre a buzinar. As ruas são uma cacofonia de acelarações e buzinadelas!


Os elegantes minaretes da Universidade de Al-Azhar

Pululam umas pequenas forgunetas brancas, que fazem serviço de transporte público. São às dezenas nos nós rodoviários, sem qualquer ordem ou sinalética. Eles lá se entendem, porque em lado nenhum há indicações de paragem ou destino. As motas também são às centenas, enfiando-se no meio do trânsito à custa de apitadelas. Podem levar dois, três, até quatro passageiros, todos sem capacete, pois claro! E, para ajudar à confusão, as mulheres andam sentadas de lado, à conta da decência e dos seus trajes compridos.

Será cómodo?

O nosso hotel situava-se junto à Praça Tahrir, no centro do Cairo moderno, mas, mesmo assim, senti um medo genuíno de atravessar as ruas. Alguém me disse: "Há que entrar na estrada! Se chegar ao outro lado, tudo bem, se não, foi a vontade de Alá!" Mas este fatalismo muçulmano não me conforta...

O velho Museu do Cairo, na Praça Tahrir

Também andámos à volta do hotel à procura de uma esplanada onde pudessemos relaxar um pouco e beber uma cerveja fresca. Que ideia tresloucada! Estamos num país muçulmano; podemos fumar o kif, mas não podemos beber cerveja!

Vida de gato...


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