sábado, 18 de outubro de 2025

Irlanda, os efeitos da fome

 

Fome, de Edward Delaney, no St. Stephen's Park, em Dublin

Parece-me que um dos fatores mais determinantes da identidade irlandesa é a Grande Fome do século XIX. Como se chega lá? Desde o século XVI que o domínio britânico se estabelece sobre a pequena ilha, discriminando a população nativa, católica, face ao vizinho mais poderoso, protestante, e criando um fosso cultural e religioso que ainda hoje é evidente. Um dos direitos que lhes era negado era o direito a adquirir terras, mantendo assim a população irlandesa num estado de submissão, pobreza e sobrevivência. O Act of Union de 1800, apesar de integrar legalmente a Irlanda na Grã-Bretanha, não muda significativamente a situação da maioria da população, composta por rendeiros pobres que subsistiam graças ao cultivo extensivo da batata.

Os belos vitrais da Guildhall de Londonderry contam toda a história 
da colonização da Irlanda

Cerca de 1845, uma bactéria chamada Phytophtora infestans atacou os campos de batata. A praga espalhou-se rapidamente e arruinou totalmente as colheitas. Durante três anos, não houve batatas para alimentar a população. Os landlords continuavam a exportar carnes e leite para Inglaterra mas, entretanto, mais de um milhão de irlandeses morreu de fome e problemas ligados à desnutrição. Por toda a Irlanda se encontram memoriais a esse período de fome e desespero. Alguns são mais singelos, outros são verdadeiramente impactantes, como os que se encontram nos cais de Dublin.

O Memorial da Fome em Dublin

Uma das figuras do Memorial da Fome

Os sapatos de bronze juntam ao cais lembram o caminho dos irlandeses que fugiam da fome

O desespero empurrou aquelas famílias esfomeadas para as cidades e daí para a emigração. Até ao final do século mais de três milhões emigraram, principalmente para os Estados Unidos da América. 

Em Sligo, esta escultura chamada "Letter to America" (que se pode ler abaixo)
é uma homenagem aos que emigraram para fugir da fome e da miséria


Os navios que vinham à Irlanda descarregar os seus produtos, principalmente madeiras, levavam aqueles infelizes na viagem de retorno por um preço simbólico. Eram os chamados “navios da fome”. No cais de Dublin está um desses navios, o Jeanie Johnston, totalmente recuperado. Vale muito a pena fazer a visita guiada ao navio, que nos transporta para aqueles tempos terríveis. O Jeanie Johnston original transportou mais de 2500 irlandeses para os portos americanos e mostra bem como era a vida a bordo. Apesar de tudo, foi chamado “navio milagre”, já que as medidas sanitárias impostas pelo capitão e pelo médico de bordo permitiram a sobrevivência da maioria dos passageiros.

O Jeanie Johnston

No interior do navio há reconstituiçoes de cenas da viagem


Muitos morriam durante a viagem. Os sobreviventes eram descarregados nos portos americanos, no meio de muitos outros imigrantes em busca de uma vida melhor. O EPIC, Museu da Emigração, mesmo frente à doca onde está o navio, tenta dar uma visão panorâmica da diáspora irlandesa. 

A entrada do EPIC


Embora também apresente as histórias de pobreza e os mais conhecidos bandidos irlandeses que inundaram os bairros de uma Nova Iorque em crescimento, foca-se mais no contributo que todos esses emigrantes deram para a expansão da cultura irlandesa pelo mundo. Da música ao desporto, da literatura à política, a cultura irlandesa impôs-se, particularmente nos EUA. Hoje, o St. Patrick’s Day é um festival que marca as cidades americanas e as inunda da cerveja, da música e do verde da Irlanda. O EPIC é um museu muito dinâmico, muito interativo. Vale bem uma visita.

Parece que são muitos...

Sabemos o resto da história. Os finais do século XIX e inícios do século XX são marcados por revoltas, insurreição armada e pressão política até que, finalmente, em 1923, a Irlanda consegue aceder à independência. Não na totalidade, a Irlanda do Norte mantém-se integrada na Grã-Bretanha, mas a maioria da ilha pode trilhar um caminho de autonomia, com escolhos e dificuldades mas que deu os seus frutos.

O belo texto da Declaração de Independência da Irlanda (hoje na Biblioteca do Trinity College)


Memorial aos heróis da independência, em Cork

Os heróis da luta pela independência estão em todo o lado, têm estátuas nas avenidas e bustos nos parques. 

Cuchulain, o herói mítico da luta pela independência

Outros são heróis ou heroínas mais recentes...

Os locais onde a luta foi mais acesa, como o GPO – o grande edifício dos Correios na principal avenida de Dublin – estão preservados e com centros de interpretação. Até nas lojas e nos pubs há reproduções de fotos e cartazes antigos que lembram figuras ou momentos marcantes da luta pela independência.

O edifício do GPO, centro da insurreição de 1916

Cópia de uma foto que representa a destruição do GPO em 1916 (esta foto decorava
uma parede de um restaurante em Cashel)

Mas o espírito não é melancólico nem depressivo. É a preservação de uma memória importante. E, se houver momentos difíceis ou casos que pareçam irresolúveis, não é nada que uma cerveja não cure, num dos alegres e ruidosos pubs irlandeses.