domingo, 26 de setembro de 2021

Bukhara - Emires, mercadores e outros viajantes

 

Fotografias dos últimos Emires de Bukhara, numa das salas do Palácio de Verão

Bukhara é uma cidade muito bela e imponente, Património da Humanidade pela UNESCO. Mas a riqueza que agora observamos, nos monumentos e espaços da cidade, provinha da sua localização privilegiada, no coração da Rota da Seda.

Conjunto escultórico evocativo das caravanas da Rota da Seda

Os bazares e cúpulas de comércio revelam bem a sua importância: chegaram a existir mais de 40 bazares, 20 caravanserais, 6 Tiks (casas comerciais) 3 Toks (cúpulas comerciais, com múltiplas entradas). Estas cúpulas comerciais estão cuidadosamente preservadas e visitámos as três: a Tok-i-Furushon, onde se vendiam chatéus e gorros de pele; a Tok-i-Zargason, onde se transacionavam jóias e pedras preciosas; e a mais importante de todas, a Tok dos banqueiros, Tok-i-Safaron, onde se faziam as transações comerciais em diferentes moedas, da China, da Rússia, da Turquia... Todos continuam a funcionar como lojas e bazares, ao fim e ao cabo como representações vivas e pujantes da sua história.

A Tok-i-Furushon

Dentro do bazar

Aqui vendia-se de tudo e trocavam-se os bens mais apetecidos de todos os cantos da Terra conhecida. As sedas e porcelanas chinesas. Os tapetes persas. As especiarias da India, do Ceilão, das Molucas. As peles e madeiras preciosas das estepes russas. Escravos negros como ébano da Abissínia e escravos loiros de pele clara das planuras eslavas. Aqui se trocavam também informações e ideias, novos conceitos matemáticos, invenções transformadoras, como o papel ou a pólvora. Aqui chegou também Marco Polo, abrindo as rotas europeias aos novos produtos e ideias. Tudo lhe pareceu tão extraordinário que escreveu um livro sobre todas essas maravilhas; o “Livro das Maravilhas do Mundo” haveria de alimentar o imaginário europeu durante mais de um século.

A venda das especiarias

A cúpula de um tok comercial

Banca de venda de carimbos para pão

Além de produtos, também circulavam histórias. Imagino os mercadores que partilhavam os caravanserai, à noite, sentados em círculo junto às fogueiras, partilhando informações, historietas e até anedotas. No meio dos jardins da Praça Lyabi Hauz, uma estátua de um homem sorridente sentado no seu burrico, chama-nos a atenção: é o sufi Hodja Nasreddin. Viveu no século XIII e era originário de Konya, na Turquia. As suas histórias e respostas prontas percorriam a Rota da Seda e ainda hoje são contadas. Quem sabe se se terá cruzado com Marco Polo?

O sufi Hodja Nasreddin, montado no seu burrinho

De toda a riqueza que aqui passava, uma parte fluía em impostos para as mãos do Emir de Bukhara, responsável pela segurança dos mercadores e dos caminhos. Com esse objetivo, eram construídos os caravanserai, que funcionavam simultaneamente como abrigos e locais de descanso e reabastecimento das caravanas. Eram uma espécie de estalagens, ou áreas de serviço dos tempos antigos, que serviam tanto as necessidades dos homens como dos camelos que compunham as caravanas. Na estrada entre Bukhara e Samarkand encontrámos um desses complexos, com o seu espaço de alojamento e uma enorme cisterna coberta para reabastecimento de água. 

O que resta de um antigo caravanserai


A velha cisterna do século XI


A residência oficial do emir ficava no Ark, a antiga cidadela, que depois os bolcheviques batizaram como Kremlin. Resistiu cerca de 1500 anos, até ser bombardeada e quase totalmente destruída pelo Exército Vermelho em 1920. Hoje, apenas uma parte está recuperada mas, mesmo assim, as altas muralhas ainda são imponentes. 

A entrada do Ark


As muralhas ainda são imponentes

Lá dentro, situava-se a residência oficial do emir, a sala do trono, os espaços onde recebia os seus súbditos, onde se reunia o Conselho. A maioria das salas são atualmente espaços museológicos dedicados aos mais variados temas, vestuário e adereços antigos, arquelogia e numismática, mas também o desastre ecológico do Mar de Aral.


O trono do espaço exterior de receção ao público

Junto às muralhas do Ark

Uma parte, seguramente significativa, dos impostos comerciais era aplicada em construções sumptuosas. Já fora da cidade, o Palácio de Verão dá disso testemunho. As salas são magníficas, refletindo influências artísticas da Rússia e da China. Os grandes jardins também são muito agradáveis e ainda por lá se encontram pavões a pavonear-se... Hoje, o Palácio pertence ao Estado e foi preservado como museu.

Entrada do Palácio de Verão do Emir de Bukhara

O pórtico de um dos pátios

Uma das salas do palácio

Pior sorte teve o último emir que aqui viveu, Alim Khan. Fazia parte da guarda pessoal do Czar Nicolau II e, quando da ocupação bolchevique, em 1920, foi preso e executado. O mesmo aconteceu a quase toda a família e, dos que sobraram, perdeu-se o rasto. Mas continuam a viver nos palácios, madrassas e mesquitas que construíram, tal como os mercadores, escravos e viajantes que lhes deram vida.

Adereços femininos - Museu do Ark

Botas de mulher - Museu do Palácio de Verão


sábado, 18 de setembro de 2021

Bukhara monumental

 

A mesquita Bolo Hauz com a sua grande piscina de ablução

Chegámos a Bukhara ao fim da tarde, o que foi uma vantagem inesperada. Depois da instalação no hotel e do jantar, saímos para um passeio noturno pela cidade, numa espécie de exploração inicial do espaço. E isso permitiu-nos ter uma primeira impressão quase feérica daquele que foi um dos principais centros da Rota da Seda.

O minarete Kalom à noite

A mesquita Kalom à noite

Para o viajante, Bukhara tem uma grande vantagem em relação a Samarkanda: o centro histórico, a cidade antiga, é relativamente homogéneo e consegue calcorrear-se a pé, absorvendo as formas, as cores, os cheiros, enfim, o espaço. Antigamente, estava dividida em duas zonas, a judaica e a muçulmana. Os principais monumentos situam-se na zona muçulmana, mas os judeus tinham uma importância muito grande no comércio e na economia da cidade. Hoje, o bairro judeu está quase despovoado de judeus, que emigraram para Israel. Mas é consolador estar numa cidade de onde os judeus saíram por escolha e não em fuga de perseguições e tentativas de extermínio.

À noite, as velhas zonas comerciais estão encerradas

Mesmo assim, alguns persistem no seu bairro. Fomos almoçar a uma casa particular, que recebe pequenos grupos de comensais. Aí pudemos apreciar, não só o “arroz pilaf” característico da região, como o requinte decorativo da própria casa, que nada no exterior traduz.

Entrar numa casa particular...

... com interiores belos e delicados.

Bukhara é uma cidade belíssima, cheia de motivos de interesse, tantos que tenho até dificuldade em fazer uma seleção. Um dos monumentos mais fascinantes da cidade – e o mais antigo – é o mausoléu do fundador da dinastia samânida, Ismail Samani, datado do século X. Alberga também os sarcófagos de outros membros da sua família. É totalmente construído com pequenos tijolos, organizados em padrões delicados e intricados, por baixo de uma abóboda circular.

O mausoléu de Ismail Samani

Reza a história que, quando da invasão de Gengis-Khan, os habitantes de Bukhara enterraram o mausoléu em areia e lama, para o protegerem. Efetivamente, foi poupado à destruição e só foi descoberto e recuperado na década de 30 do século XX!

O trabalho em tijolo é bem patente no interior do mausoléu

Pior sorte tiveram todos os outros monumentos de Bukhara. Gengis-khan mandou arrasar a cidade. Só poupou da destruição o minarete Kalom, do século XII, tão belo que sensibilizou o próprio Khan. Pioneiro no uso da cerâmica azul, o minarete ali se mantém, tão belo de dia como de noite...

No interior da mesquita Kalom

O tanque de abluções da mesquita Kalom

O centro histórico de Bukhara inclui várias mesquitas e madrassas, todas interessantes e todas diferentes dentro da sua traça arquitetónica muito peculiar. Muitas estão desativadas das suas funções religiosas e funcionam como espaço de espetáculos, ou hotéis, ou simplesmente como bazares, onde tudo se pode comprar e vender. Afinal, estamos no coração da Rota da Seda e o negócio comanda a vida!

A mesquita Chor Minor

Recordo a pequena e original Chor Minor, com os seus quatro minaretes rematados com cúpulas azul-turquesa. A madrassa Ulughbek é uma das mais antigas e interessantes: foi um centro de estudos de teologia, mas também de matemática, astronomia, geografia. Ulughbek, neto de Tamerlão, é uma personagem fascinante, sobre quem escreverei no texto sobre Samarkanda, a propósito do Observatório que aí construiu.

Parede lateral da madrassa Ulughbek

A madrassa Abdulaziz khan é uma das mais ricamente decoradas, mas eu confesso que a recordo melhor por ter sido o local onde comprei duas belíssimas almofadas, bordadas a fio de seda, com os motivos tradicionais uzbeques.

O belo pórtico de entrada na madrassa Abdulaziz khan

Em volta da grande praça Lyabi Hauz, erguem-se três madrassas majestosas, construídas entre os séculos XV e XVI. Uma delas, a madrassa Nadir Divan Begi, foi construída com a intenção de funcionar como um “caravanserai”, mas foi convertida em espaço cultural. No seu aprazível pátio central, assistimos a um espetáculo de música e dança tradicional. Gostei muito, foi muito bonito, não só devido à graciosidade e aos ricos trajes das bailarinas, mas também devido às sonoridades dos instrumentos tradicionais, tão evocativas da Rota da Seda.

O pórtico da madrassa Nadir Divan Begi, com o seu invulgar sol antropomórfico


Bailarinas com os trajes tradicionais

No centro dessa praça, um enorme reservatório de água faz as vezes de um lago. Integra um vasto sistema de irrigação e de piscinas de ablução que utilizavam a água, muito abundante, dos lençóis freáticos. A praça é muito agradável, com jardins a rodearem a grande piscina e esplanadas onde apetece sentar e deixar o tempo correr, devagarinho...

A praça Lyabi Hauz

Deixei para o final a referência à mesquita Bolo Hauz, talvez porque foi das que mais me impressionou. A primeira imagem que temos dela é a de uma profusão de colunas de madeira, ricamente esculpidas, que decora a entrada. 

A colunata da mesquita Bolo Hauz

O mihrab da mesquita

Fui-me apercebendo de que as colunas de madeira esculpida são elementos arquitetónicos comuns e característicos desta região, mas a colunata desta mesquita foi a primeira que encontrei. A beleza das suas vinte colunas, refletidas na piscina de ablução, é impressionante e não encontra paralelo... pelo menos até chegarmos à mesquita Juma, em Khiva. Mas sobre esta mesquita escreverei depois...

O pequeno minarete frente à mesquita Bolo Hauz


quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Tashkent, a cidade modelo

 

Os belos jardins de Tashkent

Tashkent é a capital do Uzbequistão e, com os seus 40 quilómetros de extensão e quase 3 milhões de habitantes, é a maior cidade da Ásia Central. Hoje já pouco resta da antiga Chach, ponto de intercâmbio entre os comerciantes sogdianos e os nómadas turcos e, portanto, um local relevante da Rota da Seda. Em 1966, Tashkent sofreu um sismo devastador e foi reconstruída como uma cidade modelo do planeamento urbano soviético, com a ajuda das outras repúblicas da URSS.

Monumento à reconstrução de Tashkent...


... e aos homens e mulheres que fizeram essa reconstrução

É uma cidade ampla, rasgada por grandes avenidas com três e quatro faixas de rodagem em cada sentido, rodeadas de árvores e jardins que lhe dão um aspeto aprazível e um ar europeu. Chamou-nos a atenção o parque automóvel. Naquelas amplas avenidas circulavam quase exclusivamente automóveis da marca Chevrolet, de cor branca. Depois percebemos: há uma fábrica dessa marca no país e esses carros pagam menos impostos...

O Museu de História dos Povos do Uzbequistão, com os inevitáveis Chevrolet

Os blocos de apartamentos alternam com equipamentos de lazer vistosos, quase grandiosos: museus, como o grande Museu de História do Uzbequistão; teatros, dramáticos, juvenis, de marionetas; ópera, salas de concertos e bailado; equipamentos desportivos, mas também o imponente edifício do Comité Olímpico do Uzbequistão...

Frente ao teatro Aladdin

Alguns pequenos museus também merecem uma visita: é o caso do Museu de Artes Aplicadas, que faz uma boa introdução ao trabalho da madeira e dos têxteis na região, tão delicado e tão rico! Instalado numa casa particular de um antigo diplomata, o espaço é, em si mesmo, uma jóia!

Uma das salas do Museu de Artes Aplicadas

Pormenor da entrada do museu

Foi também após o terramoto de 1966 que foi construído o metropolitano de Tashkent que, à imagem do de Moscovo, tenta levar a arte e a pedagogia socialista às massas trabalhadoras. É particularmente bonita a estação “Cosmonautas”, onde se celebra a conquista do espaço e o pioneirismo soviético. Ali encontramos Gagarin e Valentina Tereshkova, a par de outros estudiosos do espaço, como Copérnico. Noutra estação, são os heróis da história uzbeque, como o criador da língua uzbeque escrita, que nos rodeiam, em belas molduras de cerâmica azul.

Gagarin saúda-nos, na estação de metro

As belas cúpulas do metropolitano

Um dos quadros de cerâmica que recorda a história uzbeque

Tal como em todas as capitais do mundo soviético, há grandes hotéis, de traça idêntica; aqui em Tashkent, destaca-se o grande Hotel Uzbekistan, agora em processo de remodelação. Mas há também muitos hotéis modernos, com todas as comodidades a que estamos habituados. Afinal, o país está a apostar no turismo!

O Palacete dos Romanov

O centro da cidade é a Praça da Independência, também chamada de Amir Timur (em tradução livre, Rei Tamerlão). Não conseguimos lá ir. A aproximar-se a data da comemoração da independência, todo o recinto estava vedado e fortemente policiado. Também não se podia fotografar o Palácio do Governo, nem o do Senado. Não faço ideia de qual seria o programa das festas, mas parecia precisar do maior secretismo.

Perto da Praça da Independência...

A cegonha é a ave tutelar do Uzbequistão

Do grande parque que circunda a área governamental, só estava acessível a zona onde se localiza o memorial aos soldados uzbeques tombados na 2.ª Guerra Mundial: os seus nomes, milhares, são recordados em pequenos nichos, enquanto a estátua de uma mãe, uma mater dolorosa, vela pelo fogo sagrado.

Memorial aos soldados mortos

A Mater Dolorosa

A cidade de Tashkent é, portanto, uma cidade espaçosa e moderna, com uma marca vincada da arquitetura do período soviético, embora hoje em dia já se comecem a reconhecer outras marcas e influências: passamos por algumas lojas de cadeias internacionais e por uma enorme Disneyland, com os seus bonecos e castelos estereotipados!...

Os espaçosos parques de Tashkent

Um pouco afastado do centro desta cidade nova, restam ainda vestígios da cidade antiga. Aí, encontra-se o conjunto arquitetónico Hazrati Imam, que inclui uma madrassa, mesquitas e uma biblioteca. A madrassa (escola religiosa islâmica) ainda está em funcionamento e integra a Direção dos Muçulmanos do Uzbequistão. Sendo um país que se rege por uma Constituição laica e que tenta manter a igualdade de género, aí podem estudar tanto rapazes como raparigas.

Entrada da madrassa


A Mesquita de 6.ª feira

A caixa das esmolas...

Na mesma praça, a antiga biblioteca alberga agora um pequeno museu corânico, cuja vedeta principal é um volumoso Corão do séc. VII, mandado redigir para o terceiro califa e que constitui um dos livros mais antigos e preciosos do mundo islâmico.

A belíssima cúpula da biblioteca

Neste recanto de Tashkent, reconheço o que vim procurar ao Uzbequistão: as paredes de tijolo cor de areia são decoradas com painéis de cerâmica em tons de azul; os motivos florais entrecruzam-se com as citações decorativas sagradas; as cúpulas estonteantemente azuis cintilam ao sol. Aqui, podemos começar a nossa exploração da Rota da Seda.

Parte do Complexo Hazrati Imam