quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

De mota pelos Alpes VII– Cruzando o Mediterrâneo


Motas por todo o lado... Não há dúvida, estamos em Itália!

Quando chegámos ao nosso hotel “La Bussola”, em Novara, sentimos que tinha alguma coisa diferente do habitual; por exemplo, as nossas motas ficaram a dormir na garagem, junto a alguns automóveis antigos. Mas só no dia seguinte, à hora do pequeno-almoço, pudemos explorar as peculiaridades da decoração daquele hotel. Espalhados por todos os andares, pendurados nas paredes ou colocados em cima de móveis ou mesinhas, viam-se as mais extraordinárias coleções de objetos variados: havia rádios antigos e velhas máquinas de escrever; relógios de mesa e de parede, de todos os tipos e feitios; panos pintados do oriente e tábuas esculpidas da América do sul; saleiros e campainhas de mesa; retratos e pinturas naturalistas do séc. XVIII e XIX; enfim, um conjunto imenso e heterogéneo de objetos, que olharíamos com naturalidade num museu, mas não esperamos encontrar nos patamares de um hotel. Afinal, a Diretora do hotel era uma colecionadora entusiasta, que partilhava algumas das suas coleções com os hóspedes do hotel. Agradecemos!
Ainda tínhamos posto a hipótese de fazer um giro diurno por Novara, que bem merecia, mas resolvemos rolar para Génova. Temos de estar no porto, para embarcar, algum tempo antes das 18 horas, e ainda queremos ter um cheirinho da cidade.
Entramos em Génova por um subúrbio muito, muito feio. Mas depois chegamos ao centro histórico…
A primeira impressão é a de motas e scooters por todo o lado! Não há dúvida, estamos na Itália! Todo o ordenamento (ou desordenamento) urbano aponta para a época de maior prosperidade de Génova, a Baixa Idade Média, quando era a cabeça de um grande império comercial. A malha urbana é apertada. Em cada canto há uma igreja ou um palácio, com baixos-relevos sobre as portas e janelas. As ruas são estreitas e as casas apertam-se e sobem para o céu, cinco, seis, sete andares, para acomodar toda a população que ali vivia e labutava, no mar e no comércio. Construída num golfo que é um anfiteatro natural, as casas coloridas descem para o porto, a fazer lembrar Lisboa.

Uma malha urbana apertada...

A Ponte Reale, junto ao porto

Baixos relevos sobre as portas...

...e altares nas paredes.

Há duas características arquitetónicas que são marcantes: o contraste branco e negro, muito comum nos monumentos, em riscas ou outras conjugações; e a utilização do trompe l’oeil, mesmo nas fachadas ou sacadas dos edifícios, como se ainda fosse necessário prolongar a sua beleza e riqueza através da imaginação.
Acima de todas as descobertas, a Catedral de São Lourenço, magnífica! Tudo o que acabei de escrever foram impressões, visões fugazes, demasiado rápidas… Sinto que tenho de voltar a Génova algum dia!


A Catedral de São Lourenço...

...com as suas colunas multicolores e multiformes

O interior da catedral

A meio da tarde, fomos para o porto. A entrada para o enorme ferryboat que nos levará para Barcelona parece uma confusão. Há centenas de pessoas na fila, em carros, motas, autocaravanas. Muita gente a pé, também. Parece impossível, mas lá vão organizando a entrada e a arrumação dos veículos nos três andares de parque de estacionamento do barco, abaixo da linha de água.
O ferryboat faz a ligação entre Génova e Barcelona, cruzando o Mediterrâneo duas vezes por semana. Depois, seguirá ainda para Tânger, por isso vai cheio de marroquinos e outros magrebinos, talvez de regresso para férias às suas terras natais. Mais uma vez, o Mar Mediterrâneo como cadinho de culturas diversas! O barco está preparado para isto. Tem bares, cafetarias e restaurantes de comida europeia, mas tem também de comida halal, preparada segundo os preceitos muçulmanos. Existe até uma sala de orações para os crentes muçulmanos. Curiosamente, fica perto do ginásio. Assim se constata o que cada comunidade mais valoriza!

Os grandes ferryboats que cruzam o Mediterrâneo

À noite, a maioria dos viajantes aloja-se nas suas cabinas. No deck superior, há uma enorme sala com lugares sentados para os que não alugaram cabine. Muitos magrebinos deitam-se nesses lugares ou dormem em mantas que estenderam, pelo chão. Espalham-se pelo espaço da discoteca e do cinema. São centenas e, num passeio noturno pelo barco, criam uma estranha sensação de um mundo de sem-abrigos.
Eu dormi bem na exígua cabina do ferryboat, embalada pelo ligeiro barulho do motor e pela também ligeira ondulação, ao contrário dos meus companheiros de viagem, que parece terem estranhado bastante os aposentos. Eu acho que tenho alma de navegadora, gosto de estar no barco, a observar o mar, a tentar adivinhar o nome das terras que se veem, ou às vezes só se adivinham, no horizonte.

Cruzamo-nos na noite com outros navios


Saímos do barco cerca do meio-dia e, rodeando Barcelona, seguimos direitos a Saragoça, onde iremos pernoitar. E depois, cruzando toda a Espanha, rolamos para Lisboa, que é como quem diz, regressamos também nós a casa.

Cruzando o Mediterrâneo, no regresso a casa

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

De mota pelos Alpes VI – E agora, os Alpes italianos


Val Müstair

Começamos mais um dia com a passagem de mais um passo alpino, o OffenPass, em pleno Parque Nacional Suiço. Estamos quase na fronteira da Suiça com a Itália e o tempo está nublado e húmido, o que nos faz temer pela passagem do Stelvio. Mas as nuvens vão abrindo e acabámos por ter um dia bastante claro e ameno.
A primeira paragem foi no Mosteiro de Santa Maria de Val Müstair. É uma igreja muito antiga, fundada por Carlos Magno no século VIII, e é Património da Humanidade. No século XI tornou-se um convento, mas a igreja, dedicada a S. João Batista, ainda é a parte mais interessante do complexo monástico. Tem um conjunto impressionante de frescos românicos, representando vários temas bíblicos e uma estátua de Carlos Magno. Tenho pena de não ter uma máquina fotográfica mais potente, para captar bem a beleza daqueles frescos, tão antigos e ainda com uma cor e um dramatismo tão presentes.

Mosteiro de Santa Maria de Val Müstair

A entrada para a Igreja

Os frescos do altar-mor, vendo-se à direita a estátua de Carlos Magno

Antes de atacarmos o Passo dello Stelvio, paramos em Glorenza, já em território italiano. É uma pequena vila, com uma praça encantadora, idêntica a todas as outras pequenas vilas do norte da Suiça ou da Alemanha. Por vezes, as fronteiras são realidades muito indefinidas… Aí, numa loja de artesanato, comprámos chocalhos, de vários tamanhos e feitios, para trazer de recordação da nossa expedição alpina!
Finalmente, o Passo dello Stelvio! É o mais alto que percorremos nesta viagem, com os seus 2.757 metros. O nosso companheiro de viagem vai à frente, para filmar toda a subida, tornati após tornati, curva após curva. São mais de 40 curvas em cotovelo para cima, mais outras tantas para baixo. A passagem do Stelvio é uma estrada emblemática, para quem gosta de desafios. Os motociclistas e ciclistas enchem todo o percurso. São às centenas, juntamente com os automóveis e auto-caravanas, e entopem a estrada, tornando a subida ainda mais perigosa. O objetivo parece ser tirar uma selfie ou colocar um auto-colante lá no alto. Também o fizemos, pois claro! O cume da montanha está repleto de barraquinhas de feira, que vendem de tudo, desde bifanas a T-shirts. A primeira sensação que tenho é a de um grande circo e não posso evitar uma pequena alergia, parecida com a que senti em La Grande Motte. Talvez esteja a criar alergia às multidões… Mas o ambiente não é o de um circo, é antes o de uma grande festa, que celebra o sentimento de auto-superação! Não vou esquecer tão cedo o sorriso de felicidade do miúdo que pedalava na sua pequena bicicleta, encosta acima, puxado por uma corda pelo pai, montado na sua bicicleta de adulto!

A subida para o Passo dello Stelvio

No topo!

A descida do Stelvio

Depois do desafio superado, não é fácil afastarmo-nos dali e almoçamos num restaurante vocacionado para motociclistas, o Genziana. Soube bem o almoço, mas ainda soube melhor o aconchego da lareira, embora estivéssemos em pleno agosto.
Descemos do Stelvio e começamos a encaminhar-nos para o Lago de Como. A distância ainda é considerável e a estrada tem bastante trânsito, mas nós lá nos vamos esgueirando por entre os carros, com a ajuda de uma ou outra infração menor…

Vista do Lago Como, a partir da abadia de Piona

Já nas margens do lago, paramos na Abadia de Piona, situada num local com uma paisagem magnífica, como magníficos são os seus frescos e seus claustros. Começou por pretencer à Ordem de Cluny, mas hoje está entregue aos Cistercienses. Foi classificada pela UNESCO como Património da Humanidade, como alguns outros monumentos onde temos vindo a parar, numa quase rota alpina da arte românica.

O interior da igreja de Piona

Os claustros da abadia

E chegamos a Varenna mesmo a tempo de apanhar o barco para Bellagio. Que bem me soube a travessia do lago de Como! As casas coloridas descendo as encostas, o azul do lago esbatendo-se no céu e numa neblina leve que teimava em cobrir as montanhas… muito, muito bonito! Mais uma vez, apeteceu-me parar ali, ficar num destes hotéis à beira do lago, a apreciar a paisagem com um copo de vinho branco na mão… mas, mais uma vez, temos de continuar viagem.

As casinhas coloridas que descem para o lago...

...e a neblina que cai sobre as montanhas

Nas margens do Lago de Como

Breve paragem em Como, para retemperar as forças. A sua localização, espraiando-se pelas margens do lago a que dá o nome, é privilegiada. Há muitos turistas e ali, banhando-se na praia, vi as primeiras banhistas muçulmanas de burkini, no que foi uma das novidades desta época balnear.
Partir de Como, na direção do sudoeste, significa deixar para trás os Alpes. Foi a despedida, e foi muito bem escolhida! Agora, entramos na planície padana, a vasta região banhada pelo rio Pó, entre os Alpes e os Apeninos. Rolamos por longas retas, ladeadas de campos cultivados e grandes casas de fazenda, que nos fazem lembrar os cenários do filme de Bertolucci 1900. Dirigimo-nos para Novara, onde tínhamos hotel marcado. Novara teria merecido uma visita mais atenta, durante o dia. Percebi que o centro histórico é imponente (qual não é, em Itália?). O monumento mais importante é a Basílica de São Gaudêncio, o patrono da cidade, com a sua cúpula imponente. Ali perto, umas arcadas dão passagem para um grande pátio quadrado, ladeado por quatro edifícios históricos, de épocas e estilos não coincidentes, mas formando um complexo arquitetónico monumental. É Il Broletto. Hoje, alberga várias instituições turísticas e culturais, como a galeria de arte moderna Giannoni. Acabamos por comer qualquer coisa num belíssimo palácio quinhentista, transformado em centro cultural.

Perspetiva de Il Broletto

Outra perspetiva de Il Broletto


O nosso hotel em Novara ainda nos vai reservar algumas surpresas, mas isso fica para a próxima crónica…

A magnífica cúpula da Basílica de São Gaudêncio

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

De mota pelos Alpes V – No país da Heidi

O nosso hotel em Wassen

Saímos logo pela manhã do nosso belo hotel de madeira escura com sardinheiras nas janelas. Dei uma voltinha pelas redondezas e percebi facilmente a razão de tudo parecer sempre tão bonito e perfeito: viam-se várias pessoas às janelas, retirando cuidadosamente as florinhas secas das frondosas sardinheiras! Mesmo em frente do hotel havia um fontanário e três homens tinham retirado e esfregavam vigorosamente as grades de metal que se apoiavam no fundo da fonte. Assim se consegue este aspeto sempre impecável! Um dos homens ainda nos tirou uma fotografia junto da fonte e seguimos viagem.

A foto de grupo, junto ao fontanário

A primeira paragem é na famosa Teufelsbrücke, a Ponte do Diabo. É um estranho e intrincado cruzamento de pontes, no cantão de Uri: a ponte ferroviária, a nova ponte rodoviária e a velha ponte de pedra, que veio substituir a ponte ainda mais antiga, construída pelo diabo a troco da alma do primeiro que ali passasse. Já fiz aqui um post sobre este local, por isso não me vou alongar, mas dizer apenas que é um local estranho e fascinante, cheio de histórias.

A misteriosa Teufelbrücke

Seguimos para Andermatt, onde abastecemos com a gasolina mais cara da viagem, ainda mais cara do que em Portugal! Hoje, talvez Portugal já tenha ultrapassado essa fasquia!
Paramos para visitar o Mosteiro Beneditino de Disentis. É um belo mosteiro, ainda gerido pelos monges, numa vila tranquila. Foi fundado no século VIII, mas dessa primeira edificação já pouco resta. Houve entretanto uma grande remodelação, que hoje revela uma belíssima igreja barroca.


O belo interior barroco do Mosteiro de Disentis


O orgão do Mosteiro Beneditino de Disentis

A partir daqui, decidimos sair das estradas principais para sentir bem o ambiente das aldeias alpinas. Estamos na Suiça profunda, as casas são de madeira e as paragens de autocarro estão assinaladas por montículos de pedras. Numa dessas aldeias, Mainfeld, inspirou-se a criadora da Heidi, mas chuviscava e não tivemos coragem de ir procurar a casa da miúda…

À descoberta das aldeias alpinas

...com as suas casinhas de madeira...

... e as mais mimosas paragens de autocarro!

O almoço foi em Chur. É uma pequena cidade, muito agradável, com um centro histórico bonito, à entrada do vale do Reno. Escolhemos para almoçar a esplanada de uma pizzaria que ostentava à entrada, orgulhosamente, um diploma atribuído ao chef, um cozinheiro português! Afinal, estamos na Suiça, uma das regiões da diáspora portuguesa! Em algumas comunidades deste cantão de Grisões, a terceira língua é mesmo o português, depois do romanche e do alemão.

A entrada para o centro histórico de Chur

A pizzaria com o chef português premiado

Fontanário com a cabra-montês, símbolo da região

Durante a tarde, ainda houve tempo para uma paragem em Davos. Estância turística muito diferenciada, tal como a sua vizinha Klosters, é principalmente conhecida por ser a sede do World Economic Forum, where the world leaders meet, uma vez por ano. Por isso, nós também não podíamos falhar a visita!



Davos, por qualquer razão que não percebemos, estava cheia de judeus ortodoxos, grandes famílias, com as suas indumentárias características. Seria um encontro internacional de rabinos, ou coisa parecida?
No meio daquele ambiente tão cosmopolita, o que mais gostei em Davos foi uma instalação no lago de um jardim. Não guardei o nome do autor, mas guardei na alma a aparição quase fantasmagórica daquelas figuras humanas, de chapéu-de-chuva aberto, pairando sobre o lago como se caminhassem sem destino.

Figuras deambulam no lago, sob os seus chapéus-de-chuva


Ultrapassado mais um passo alpino, o Flüela Pass, acima dos 2 300 metros, a chegada a Zernez foi mais cedo do que o habitual. O Hotel Spöl é mimoso, um hotel de montanha numa pequena vila. Ali não há desportos de inverno, mas há caça grossa, como veados, que está na base da decoração do hotel.
Foi muito interessante o contacto com os portugueses que ali trabalhavam: a Liliana, que veio a correr quando viu que eram duas motas portuguesas que estavam a estacionar, e o João, empregado no nosso hotel, com quem conversamos bastante durante o jantar. Comemos um prato tradicional da região,“capuns”, rolinhos feitos com acelga ou alface e recheados com carne e, no final, o João ofereceu-nos um licor, feito a partir de uma planta que só existe nos cumes alpinos, chamada “eve” (provavelmente não se escreve assim, mas não importa!). Afinal, as viagens também se fazem destas descobertas e reconhecimentos.

Uma hospedaria, no cume do Flüela Pass