sexta-feira, 23 de julho de 2021

As memórias de Liverpool

 

Construções modernas no porto de Liverpool

E pronto, aconteceu mesmo: Liverpool deixou de estar classificada como Património Mundial pela UNESCO. Ou melhor, a UNESCO retirou-lhe essa classificação, o que implica, além da perda de prestígio, a perda de fundos para a sua preservação. Não é um facto inédito, mas é muito raro.

Guardo de Liverpool uma memória cinzenta. Céus nublados sobre cais intermináveis com navios de todos os tamanhos, num emaranhado de cascos e cordas e gruas. Foi precisamente esse porto e esse movimento de navios que deram glória e riqueza a Liverpool. Ali chegavam os produtos de todo o império britânico, particularmente os preciosos fardos de algodão cultivados na América, que estiveram no arranque da Revolução Industrial. Chegou a ser o maior porto atlântico inglês, por onde circularam também milhões de pessoas, entre o Velho e o Novo Mundo. O primeiro troço de caminho de ferro do mundo foi construído ali, ligando Liverpool à grande cidade industrial de Manchester. Por ali circulava uma imensa quantidade de produtos e de riqueza.

As ruas estreitas do centro

Foi essa memória que levou a UNESCO a classificar Liverpool como Património Mundial da Humanidade. Mas o tempo passou e a tentação da modernidade foi maior. A zona portuária foi desfigurada por construções modernistas e arrojadas. Até um estádio de futebol para uma das equipas da cidade aí está a ser construído. Tudo muito bonito, talvez, mas sem cuidar da preservação da memória. E o resultado aí está!...

Entrada em Mathew Street

Quando recordo Liverpool, todavia, não é o porto movimentado que me assalta a memória. Não foi por isso que lá fui. Numa rua estreita do centro da cidade, chamada Mathew Street, havia um clube de música ao vivo. Aí tocaram ou iniciaram as suas carreiras muitos nomes conhecidos do mundo da música. Os seus nomes estão gravados nos tijolos que compõem a fachada. 

The Cavern Club


Os nomes gravados nos tijolos

Aí se estrearam os Beatles, que aí continuaram a tocar muitas vezes. Nessa rua, nesse clube, The Cavern Club, presta-se homenagem a esse grupo de quatro jovens que revolucionaram a música pop. Hoje, a rua está cheia de memoriais dos mais variados. Até os bares ostentam nomes que fazem referência a músicas dos Beatles, como o Sgt. Pepper’s.


Atualmente, talvez não se tenha noção da dimensão da mudança que os Beatles protagonizaram. Mas foram marcantes para a minha geração e foi para lhes prestar homenagem que fui a Liverpool. Espero que essa memória continue a ser preservada.

Eu e o meu amigo John Lennon...

(Fotografias de 2006, exceto a das atuais construções no porto de Liverpool, retirada do Google, da página do jornal Siete)

quinta-feira, 1 de julho de 2021

Os castelos de Loarre e Ponferrada – Os guardiões do caminho

 

O Castelo de Ponferrada

Quer acreditemos ou não que o túmulo descoberto nos confins da Ibéria no século IX continha mesmo os restos mortais do apóstolo Santiago Maior, para ali transportado numa barca de pedra depois de ter sido decapitado em Jerusalém, pouco importa... O facto inegável é que essa descoberta deu origem à Rota Jacobeia, ou Caminho de Santiago, a peregrinação mais importante da Europa medieval. Mais significativa para o crente, só a peregrinação aos centros do Cristianismo, Roma ou Jerusalém. Mas essas peregrinações esgotavam-se no local de destino, enquanto na Rota Jacobeia o mais importante era precisamente o caminho.

O Castelo de Loarre


Cada vez mais pessoas percorriam os campos e os caminhos do norte da Península Ibérica, na direção da Galiza e de Santiago de Compostela. O caminho semeou-se de ermidas e locais sagrados e povoou-se de lendas e histórias edificantes, que ajudavam o peregrino no seu percurso em direção a Compostela e à transcendência de si mesmo.

Todavia, nos séculos X e XI, o norte da Península era um lugar perigoso, assolado pelos muçulmanos que ocupavam todo o restante território peninsular. Se, por um lado, a peregrinação era importante como uma afirmação do Cristianismo face ao Islão, por outro lado, colocava desafios no que dizia respeito à proteção dos peregrinos. Assim, ao lado das ermidas e catedrais que pontuam o caminho, cresceram também castelos para garantir a sua defesa.

Ao longe, o castelo mal se distingue dos rochedos


Um dos mais importantes e majestosos é o Castelo de Loarre. Localizado em Aragão, ainda terra de fronteira com os infiéis, assinalava quase o início do chamado caminho aragonês, logo à saída dos Pirinéus. A sua silhueta imponente mistura-se com os maciços rochosos, tornando-o difícil de distinguir ao longe. E, no entanto, é a maior e mais complexa fortificação românica de Espanha.




Dentro do castelo...

Foi mandado construir pelo rei de Navarra logo no início do século XI, constituindo-se de imediato como um baluarte defensivo face ao poder muçulmano. No final do século, funda-se no castelo um mosteiro de monges agostinhos. Com esta fundação, o castelo é ampliado e há várias campanhas de obras. Esta junção da esfera militar com a esfera religiosa, torna o edifício uma estrutura complexa, composta por três andares, ligados por escadas interiores e exteriores. A função militar e a função religiosa cruzam-se. As torres de defesa, a sala de armas, os calabouços, são vizinhos das celas dos monges e das pequenas capelas de Santa Maria e Santa Quitéria. A bela Capela Real, ou Igreja de São Pedro, é um exemplo do estilo românico no seu apogeu, desde as finas colunas que rodeiam as janelas até aos capitéis que rematam as colunas da ábside, decorados com motivos vegetalistas ou fantásticos e cenas da Bíblia.

Os nossos capacetes repousam numa das belas janelas do Castelo de Loarre


E aqui se pôde admirar, durante algum tempo, o próprio Santo Graal, isto é, a taça que teria recolhido o sangue de Cristo na cruz. É aqui que a história se mistura com as lendas, com o misticismo popular, com os símbolos de poder. Juan G. Atienza, no seu livro sobre as lendas do Caminho de Santiago, traça o itinerário que o dito Cálice teria percorrido, desde as mãos de S. Pedro, que recolheu o sangue, até ao recém-formado reino de Aragão. Hoje, como se sabe, repousa alegadamente numa capela da Catedral de Valencia.

Réplica do Graal que terá andado por terras de Aragão (mosteiro de San Juan de la Peña)

Não vale confundir este cálice aragonês com o Graal das lendas arturianas, relacionado com a busca da sabedoria e do auto-aperfeiçoamento. Como escreve Atienda, aqui em Aragão o mito “transformou-se numa realidade palpável e acabou por se converter num objeto devocional por excelência, meta de ideais e versão palpável de um símbolo universal.”

Se o Castelo de Loarre é o primeiro grande castelo que encontramos na proteção do Caminho de Santiago, o último localiza-se quase no outro extremo da península, à entrada da Galiza: é o Castelo de Ponferrada.

A entrada principal do castelo de Ponferrada

O nome de Ponferrada parece ter surgido de uma ponte medieval reforçada com ferros (pons ferrata), construída para benefício dos peregrinos a caminho de Santiago. E é aí que é construído também o grande castelo dos Cavaleiros Templários, na sequência da doação feita pelos reis de Leão à Ordem do Templo, em 1178. Desde o início, o objetivo assumido é a defesa do Caminho de Santiago.

O maior torreão do castelo

Hoje, o castelo que podemos visitar já é seguramente muito diferente do original. Houve obras de ampliação e reformas até ao século XV e, em alguns setores, mesmo no século XIX e início do século XX.

O espaço interior ainda mostra os sinais das campanhas de obras

A entrada do castelo, através do chamado Portão de Armas, rodeado de torreões, é imponente e irresistivelmente bonita. Dentro do castelo funciona o Museo del Bierzo, que expõe a Recuperación del Castillo de los Templarios. Vale a pena visitar e perceber as vicissitudes por que o espaço já passou, em especial nos últimos séculos. Depois de ficar quase destruído durante a Guerra Peninsular, as suas pedras foram utilizadas para outras construções e até vendidas. Foi utlizado como terreno de cultivo, depois como clube desportivo. A construção de um campo de futebol no seu interior ajudou à destruição. Só no final do século XX se restaurou e requalificou o castelo templário. Talvez por tudo isto, apresenta um certo ar de castelo de desenhos animados.

Pátio de Armas recuperado do Castelo de Ponferrada

Quando visitei o castelo, estava aberta ao público uma grande exposição chamada Templum Libri – As páginas mais belas do conhecimento, com um conjunto maravilhoso de livros e estampas repletos de iluminuras. Alguns são réplicas, mas estão indicados como tal e só acrescentam beleza ao conjunto.





Dois castelos, dois estilos, duas histórias. Em comum, o objetivo de defenderem uma das rotas religiosas mais importantes da Europa, o Caminho de Santiago.

Também em comum, a chuva que caía quando os visitei: chuva puxada a vento no Loarre; uma chuvinha miúda em Ponferrada. Em consequência, as fotografias não ficaram tão bonitas como eu gostaria e não fazem jus a estas imponentes fortificações. Como sempre, melhor do que ver as fotografias será visitar os próprios castelos.

Outra perspetiva do Pátio de Armas recuperado do Castelo de Ponferrada