quinta-feira, 20 de junho de 2019

Praga em Varsóvia


O urso, símbolo de Praga
 
Praga em Varsóvia? Sim, Praga é o nome da cidade (hoje, um bairro da capital) que faz frente a Varsóvia, na outra margem do rio Vístula. Foi sempre a parente pobre da rica cidade do outro lado do rio, onde se acumularam problemas e carências. Povoada por vagabundos e salteadores, era um sítio perigoso, onde as pessoas não se aventuravam. Foi aí que as tropas russas estacionaram, quando avançavam sobre a capital. Foi aí que se desenvolveu a zona industrial e se instalaram as famílias operárias e foi também aí que grassou o desemprego e o alcoolismo quando da crise que marcou a passagem do regime comunista para o regime democrático e o sistema capitalista.
Mas hoje Praga está a tornar-se um bairro da moda, alternativo, onde jovens artistas se estabelecem e nascem galerias de arte. Prova disso são os murais e outras instalações artísticas que encontramos nas ruas.

Uma instalação num passeio
Homenagem aos grupos de músicos de rua

Para mim, no entanto, o aspeto mais interessante de Praga é a sua autenticidade. Enquanto Varsóvia foi reduzida a cinzas e destroços, mais de setenta por cento dos edifícios de Praga mantiveram-se de pé. Sofreram poucas modificações desde aí e, nessas ruas, ainda se consegue ter um vislumbre do que era a cidade na primeira metade do século XX. Por esta razão, Roman Polanski escolheu estas ruas e estas casas para filmar muitas cenas do seu filme “O Pianista”.

Um prédio da época da guerra

A velha estação de caminhos de ferro de São Petersburg ainda está de pé, bem como a igreja ortodoxa construída na praça fronteira para confortar os russos transportados para a cidade no século XIX para a “russificarem” e assim ajudarem a subjugar os teimosos polacos.

A catedral ortodoxa de Praga

Em várias casas das ruas por onde andámos, vimos pequenos altares nos pátios interiores, com imagens de Cristo ou de Nossa Senhora. Explicaram-nos que aquelas casas pertenciam a judeus. Quando estes foram encerrados no gueto, foram ali realojadas outras pessoas, algumas vindas da própria zona onde agora se localizava o gueto. E essas pessoas ali ficaram. Em 1943, a repressão à revolta no gueto levou à sua destruição total. Os novos habitantes das casas de Praga, convictos de os seus donos jamais regressariam, ergueram então estes pequenos santuários nos pátios agora cristianizados, numa súplica por proteção divina. Durante o resto da guerra, aí se celebravam os casamentos, os batizados e os funerais. Com o correr do tempo, foram-se abrindo aí as próprias sepulturas para os mortos. Penso comigo mesma que estes pequenos altares simbolizam bem a capacidade, tão humana, de nos adaptarmos a novas circunstâncias e de lutarmos pela preservação, não só da nossa vida, mas de qualquer coisa que lhe dê algum sentido e dignidade.

Exemplos dos pequenos santuários nos pátios das casas


O Zoo de Varsóvia situa-se aqui em Praga. Fora do Zoo, separado da avenida por um fosso, um espaço muito arborizado alberga três ursos-fêmeas. Uma nasceu ali, as outras duas foram resgatadas de circos na época do colapso do comunismo. Ali viverão até falecerem de velhice, interagindo com os passeantes e constituindo um símbolo vivo de Praga, que ostenta um urso no seu brazão.

Uma das ursas de Praga


sábado, 15 de junho de 2019

A Varsóvia da Guerra


A memória dos bombardeamentos

Tínhamos decidido tirar um dia para a Varsóvia do tempo da guerra. Não é fácil nem imediato, porque não resta muita coisa. Mas os vestígios e as referências estão por toda a parte.
O gueto de Varsóvia ficou tristemente célebre; era a maior concentração forçada de judeus no mundo nazi e o seu destino foi cruel. Restou pouco: uma parte do muro, assinalada por uma placa; uma casa que sobreviveu à destruição e posterior reconstrução; uma marca no chão assinalando a linha onde o muro passava.

A linha que assinala os limites do gueto

A única casa do antigo gueto ainda de pé

Hoje, toda essa zona é residencial e os prédios e avenidas estendem-se, indiferentes ao passado. Resta de pé a velha prisão, também utilizada na época comunista.

Uma árvore coberta de evocações

O muro da antiga prisão

Perto da zona velha da cidade, há um conjunto escultórico duplo, que apresenta os insurgentes da insurreição de 1944. O seu símbolo surge em vários locais inesperados, até em tatuagens, e assim se percebe que os polacos têm orgulho na sua resistência ao invasor. Uma parte do conjunto escultórico mostra-nos os combatentes, outra mostra-nos os que, já no desespero final, fugiram das tropas nazis pelos esgotos.

Memorial aos insurgentes de 1944...

... incluindo os que fugiram pelos esgotos

Uma pequena estátua, muito tocante, lembra as crianças que lutaram e morreram, ao lado dos adultos.

Memorial às crianças que combateram ao lado dos adultos
Para quem se interessa pelo tema, há dois museus que são imperdíveis: o Museu Polin e o Museu da Insurreição de Varsóvia.
O Museu Polin percorre a história dos Judeus na Polónia. O Museu apenas foi inaugurado em 2014 e é uma espantosa obra de arquitetura mas, acima de tudo, é um extraordinário testemunho do que foi a vida dos judeus nesta região, desde os primeiros contactos de mercadores, no século XI, até aos terríveis acontecimentos do século XX e à atualidade. Há um percurso recomendado, que nos leva através de oito zonas, cada uma explorando uma época da História. Há um grande equilíbrio no tratamento de todas as épocas, mostrando os pormenores da vida quotidiana, mas também os grandes eventos ou decisões coletivas que influenciaram a comunidade. Há muitos documentos em exposição, mas percebe-se que é a imagem que é mais valorizada, através de desenhos, filmes, projeções, instalações interativas. É um museu fascinante, onde nos podemos facilmente perder por três ou quatro horas.

O Museu Polin

Reconstituição de uma antiga sinagoga de madeira

O Museu da Insurreição de Varsóvia é também um museu muito interessante. Faz-nos mergulhar no mundo de repressão, terror, desespero e revolta da Varsóvia dos anos da guerra. As imagens, associadas ao som e às instalações de vídeo, tornam a experiência muito intensa.
A revolta eclodiu em 1944 e, durante dois meses, a população de Varsóvia lutou contra o poderoso exército alemão. Apesar da desproporção de forças, conseguiram dominar muitas zonas da cidade, até que a falta de armas e de mantimentos os levou à rendição. Talvez uma ajuda dos Aliados tivesse levado a um desfecho diferente, mas os Soviéticos, estacionados do outro lado do rio, deixaram os Polacos a lutar sozinhos. Talvez Stalin já antecipasse o domínio soviético desta zona e preferisse um povo fraco e desmoralizado a um governo forte, independente e representativo.

O símbolo da Insurreição

A primeira guarita tomada pelos insurretos

O que é um facto é que alguns líderes da revolta, sobreviventes da guerra, foram presos pelos russos e não sobreviveram aos seus tenebrosos campos de trabalhos forçados.
Durante a revolta e a terrível repressão alemã, milhares de resistentes, homens, mulheres e crianças, perderam a vida. Já sem lugar para as sepulturas, nem mesmo junto aos pequenos santuários dos pátios, começaram a enterrá-los debaixo dos escombros. E assim Varsóvia terminou a guerra, uma cidade de ruínas e de cruzes.

O grande memorial aos resistentes do Gueto

A parte de trás do Memorial lembra os judeus perseguidos

Dirijo-me para o aeroporto, pelas avenidas largas e modernas de uma cidade renascida e cheia de dinamismo económico. Os habitantes não são os mesmos, provavelmente já nem descendem dos heroicos resistentes de 44, mas, de algum modo, estes bairros modernos e vibrantes são uma homenagem aos milhares que morreram pela libertação e independência de Varsóvia.
 
As modernas avenidas que cruzam Varsóvia