segunda-feira, 8 de abril de 2019

Postal de Lisboa XXVI - O Convento da Graça



A Sala da Portaria do Convento da Graça

Quem for, por estes dias de calor antecipado, beber uma cerveja fresquinha na esplanada do Miradouro da Graça (há poucos anos rebatizado como Miradouro Sophia de Mello Breyner Andresen), tem mais um local para deslumbrar o olhar. Além do esplendor do rio, do castelo, do casario de Lisboa, tem também o recentemente recuperado Convento da Graça.
Parece que os monges agostinhos já por aqui andavam desde a conquista de Lisboa, mas o conjunto do convento e da igreja foi fundado no século XIII. Foram reedificados no século XVI e, depois do terramoto de 1755, a igreja foi restaurada em estilo barroco. O convento não foi muito destruído mas, após a extinção das ordens religiosas, foi transformado em quartel do exército. Nos painéis de azulejos, os olhos picados das figuras religiosas esclarecem-nos sobre a distração das tropas que por ali estacionavam.

O magnífico trabalho em mármore do chão

Embora classificado como Monumento Nacional em 1910, o espaço do convento passou a funcionar como creche. O chão coberto de linóleo e as paredes tapadas com contraplacado acabaram por preservar o edifício das brincadeiras das crianças, que tinham no claustro o seu espaço de recreio.
Hoje, o espaço conventual está bem recuperado e revela-se em toda a sua beleza. A chamada Sala da Portaria aparenta ser uma antiga capela, revestida de mármores e estuques trabalhados. Ao fundo, uma réplica do quadro de Vieira Lusitano “Santo Agostinho calcando aos pés a Heresia” recorda-nos a Ordem religiosa que ali se instalou durante tantos séculos (o original está no Museu Nacional de Arte Antiga).

O Claustro

O Claustro é um foco de luz e alvura no centro do convento, com os seus arcos regulares e a sua geometria depurada.
Mas o que mais me interessou foram os grandes painéis de azulejos da Sala do Capítulo. É uma sala comprida e os painéis estendem-se pelas paredes, ao ritmo das portas e janelas. Cada um conta uma história ou apresenta um episódio relevante relacionado com a vida de um daqueles frades agostinhos. A tónica comum é a pregação, a ação missionária. E, quantas vezes, a santidade ou o martírio. As cenas sucedem-se, de Moscóvia a Zanzibar.
O maior painel conta a história de uma rainha do reino do Gorgistão (atual Geórgia), que tinha tomado o hábito da ordem dos agostinhos. Após a invasão do Gorgistão pelas tropas persas, a rainha Ketevan foi enviada ao Xá Abbas, rei da Pérsia, numa embaixada de paz. Mas o Xá mandou prendê-la em Xiraz, onde ficou em cativeiro durante onze anos. Suspeitando de que a rainha Ketevan fornecia informações a seu filho, o rei Tamarashan, sobre o que se passava na Pérsia, o Xá enviou os seus soldados a Xiraz com uma proposta: ou se tornava muçulmana ou seria martirizada até à morte com tenazes de ferro em brasa. A recusa da rainha em abandonar a sua fé levou-a ao martírio, pormenorizadamente contado nos azulejos. Esta história passou-se em 1624. Quase quatro séculos depois, em 2017, o restauro dos azulejos deste painel foi financiado pelo Governo da Geórgia! Como a história perdura!

Parte do painel da rainha Ketevan

Nem todas as histórias de missionação acabam mal. Outro painel conta-nos a conversão do rei de Comine, em Angola, com os seus 6 filhos, 3 netos e muitas outras pessoas de alta hierarquia, em 1575, por Frei Pedro da Graça, que pelo seu trabalho missionário ficou conhecido como o Apóstolo d’ África.

Parte do painel de Frei Pedro da Graça

Será pela proximidade com este trabalho missionário que a Igreja da Graça se irá transformar na sede de uma das confrarias de escravos convertidos existentes em Lisboa? É provável. Essas “irmandades de homens pretos e pardos”, como eram chamadas na época, proliferaram em Lisboa e no sul de Portugal, onde os escravos eram em maior número. Forneciam-lhes algum conforto espiritual e alguma ajuda material na velhice ou no funeral. E assim se incorporaram alguns santos negros no panteão católico, como ainda se pode ver num dos altares da Igreja, dedicado a Nossa Senhora do Rosário.

O altar dedicado a Nossa Senhora do Rosário

Vale a pena visitar estes espaços e refletir sobre os seus significados que, para o bem e para o mal, fazem parte de nós e da nossa história.