domingo, 10 de outubro de 2021

A mítica Samarcanda

Mesquita Bibi-Khanum

Samarcanda... Só dizer o nome, devagar, saboreando as sílabas, é o suficiente para evocarmos toda a magia da Rota da Seda. No nosso espírito, passam caravanas de camelos, carregados dos produtos mais ricos e apetecidos de todos os cantos da Terra conhecida. Evocamos a sua caminhada vagarosa, entre desertos, montanhas, vales férteis, em viagens que chegavam a durar três anos. Ouvimos o ruído dos bazares, cheio de línguas diferentes. Sentimos os cheiros, percebemos as cores brilhantes. Para nós, Samarcanda resume toda a mística e exotismo do Oriente.

Banca de frutos secos no Mercado Siab

É claro que eu sei que a ideia de Oriente é uma construção do Ocidente. O que para nós é exótico, constitui o modo de vida desses povos. Mas, seja como for, construiu o imaginário ocidental e é em busca desse imaginário que eu vou, sem esquecer a realidade presente, na qual todos nos movimentamos.

Os minaretes da Mesquita Bibi Khanum

Samarcanda é das cidades mais antigas da Ásia Central, habitada continuamente desde o século VIII ou VII a.C. A sua prosperidade baseia-se na sua posição geográfica privilegiada, a meio caminho entre a China e o Mediterrâneo. Os primeiros povos a explorarem as possibilidades comerciais dessa localização, foram os Sogdianos. Os crânios alongados destas populações, encontrados nas escavações arqueológicas, alimentaram todo o tipo de especulações sensacionalistas, até a investigação histórica ter trazido menos espetáculo e mais sensatez à questão. Os crânios, com a sua forma peculiar, aí estão, no Museu Arquelógico de Samarcanda.

Crânios de Sogdianos no Museu Afrossiab

A visita a Samarcanda pode bem começar por este pequeno museu arqueológico, chamado Museu Afrossiab, do nome antigo de Samarcanda. A jóia deste museu é um fresco do século VII que ocupa as quatro paredes de uma sala e reconstitui a chegada e o encontro de cavaleiros e mercadores de regiões longínquas, como a China. O que resta do fresco atesta a antiguidade das relações comerciais que aqui se estabeleceram.

Antigos estudiosos e mercadores na fachada do Museu Arqueológico de Samarcanda

Outro local interessante e imperdível é o mausoléu do Profeta Daniel. É interessante porque a própria existência desta personagem bíblica é questionada e nada mais nada menos do que seis cidades reclamam para si a honra de possuírem o túmulo do profeta. Mas é imperdível pela próprias características do túmulo. A urna que supostamente contém os seus restos mortais é enorme, talvez com uns cinco ou seis metros. A razão dada é que os ossos do profeta crescem continuamente, uns centímetros por ano. Outra explicação, talvez com mais fundamento, defende que a urna tem aquele tamanho descomunal para dissuadir eventuais ladrões de túmulos. Seja como for, o mausoléu é um local de peregrinação importante, tanto para cristãos como para muçulmanos.

O mausoléu de Daniel, na montanha

A imensa urna do profeta Daniel

A sala de acolhimento dos peregrinos

Os pontos mais monumentais na cidade de Samarcanda pertencem ao período de domínio de Timur, ou Tamerlão, como o conhecemos aqui na Europa. Depois da destruição generalizada que as invasões de Gengis-Khan tinham provocado, Tamerlão estabelece um novo império e Samarcanda é a sua capital. Conhecido pelas suas ações cruéis e impiedosas, parece ter orientado para o embelezamento da cidade tudo o que em si houvesse de sensível e artístico. O esplendor da Samarcanda da dinastia Timúrida é insuperável e ainda hoje nos deixa de respiração suspensa. Ficará para o próximo post...

No complexo Shaki Zinda, a modernidade cruza-se com o esplendor timúrida

Não quero, todavia, deixar de mencionar aqui uma obra surpreendente, pelo menos para o visitante europeu: o observatório astronómico de Ulugh-Bek.

Estátua de Ulugh Bek, junto ao observatório

Ulugh-Bek era neto de Tamerlão e chegou a governar este território no século XV. No entanto, a sua paixão era a matemática e a astronomia. Construiu uma madrassa, onde também ensinou, e um enorme observatório astronómico, em Samarcanda. Aí, determinou a posição de centenas de estrelas, corrigindo as tabelas árabes e fazendo observações originais e muito avançadas no seu tempo. O que resta do observatório é, ainda hoje, impressionante, e um pequeno centro interpretativo ajuda-nos a compreender melhor a sua obra. O que eu não compreendo é que o nome de Ulugh-Bek não figure nos nossos manuais de História da Ciência, ao lado de Copérnico e Galileu. Os contemporâneos também não o valorizaram muito: fosse pela sua inabilidade política, fosse pelo seu insuficiente fervor religioso, foi mandado matar pelo seu próprio filho.Valeu-lhe um astrónomo alemão, que no século XIX batizou com o seu nome uma cratera na Lua!

Reconstituição do observatório (maquete no centro interpretativo)

Limpezas matinais no observatório...

Próximo da mesquita Bibi Khanum, mandada construir pela esposa de Tamerlão, situa-se ainda hoje o mercado Siab, o bazar mais importante da cidade. Fomos visitá-lo, na ideia de comprar uma espécie de torrão doce, típico da região. É um mercado enorme, onde se vende de tudo, desde chapéus a especiarias. Lá encontramos o torrão, que compramos, assim como outras curiosidades, como melão seco entrançado. Aí encontrei também a simpatia e gentileza do povo uzbeque.

Banca de venda de chapéus, no mercado Siab

Nesse mercado, três rapariguinhas vieram ter comigo, ansiosas por mostrarem o seu domínio da língua inglesa, ainda pouco vulgar no país. Conversámos um pouco, tirámos fotografias... Podiam ser minhas alunas! Em Samarcanda, fui surpreendida pela simpatia e quase ingenuidade dos uzbeques, que nos interpelavam, por vezes apenas para tirarem uma fotografia. Falei com mulheres uzbeques, mesmo quando não partilhávamos nenhuma língua, comunicando apenas pelo sorriso e pelo coração.

Entre mulheres...

Hoje, lembro-me dessas mulheres e das rapariguinhas no mercado e, nestes tempos conturbados pelo fundamentalismo, desejo-lhes muita força e um mundo um pouco menos hostil.