quinta-feira, 20 de abril de 2017

Escapadela nórdica - Gotemburgo

Prometeu descendo para um canal...

Hoje em dia, as companhias aéreas, mesmo as de low-cost, voam para imensos destinos europeus, permitindo-nos visitar com alguma facilidade, não só as capitais europeias, mas muitas outras cidades que, não sendo tão centrais, são igualmente interessantes. Vou tentar fazer alguns posts sobre essas cidades, que têm também muito que ver e apreciar.
Gotemburgo é a segunda cidade mais importante da Suécia. Talvez não seja tão bela e imponente como Estocolmo mas dizem os locais que é mais agradável e amistosa. Situa-se na costa oeste da península escandinava, no estreito de Kattegat, com saída direta para o Mar do Norte. E parece que terá sido essa a razão para que o rei Gustavo Adolfo, no século XVII, tenha decidido aí construir um porto que rapidamente cresceu. 


Estátua de Gustavo Adolfo, o rei fundador da cidade

Hoje, é o maior porto da Escandinávia, e, apesar de já ter perdido algumas das suas valências, ainda mostra as enormes estruturas onde se construiam ou reparavam os petroleiros e outros grandes navios, não há muito tempo atrás.


No porto de Gotemburgo...

O local escolhido pelo rei era pantanoso e foi necessário drenar o terreno antes de começar a construir. E o rei, inteligentemente, contratou holandeses para secarem e prepararem a terra. Talvez por isso, o centro de Gotemburgo é cortado por inúmeros canais, fazendo lembrar Amesterdão. Hoje, os canais acompanham ruas e jardins e até os últimos vestígios da antiga muralha defensiva da cidade, em forma de estrela, como era uso no século XVII.


Os jardins que rodeiam os canais
Os canais passam pelo centro da cidade

No século XVIII, para prevenir os incêndios, foi proibida a construção de casas em madeira dentro da muralha. Os mais pobres, que para tal não tinham dinheiro, foram construir as suas casas de madeira fora das muralhas, em Haga, um bairro que hoje está na moda e onde se situam os restaurantes e lojas mais jovens e alternativos da cidade.


Há zonas jovens e alternativas

Perto de Haga, numa pequena elevação, encontra-se uma Torre da antiga estrutura defensiva, a Skansen Kronan, contruída em 1697. Está muito bem preservada e daí tem-se uma bela perspetiva da cidade de Gotemburgo.


A Skansen Kronan
Gotemburgo vista da Skansen Kronen

O centro da cidade está cheio de casas do século XIX e junto ao porto há grandes construções, num estilo modernista, que albergam a nova Ópera, a Universidade ou a sede da Volvo... 


A fonte dos cinco continentes
O Museu da Cidade
A nova Ópera

Mas o meu edifício predileto é o antigo Mercado do Peixe, o Feskekôrka, com o seu aspeto de igreja antiga. Mantém as suas funções de mercado, e ali é o sítio ideal para comprar camarões ou arenque fresco ou salgado, embora também tenha uma zona de restauração no interior.


O Feskekôrka
Homenagem aos pescadores junto ao Mercado do Peixe

Pelo que pude perceber, a vida cultural da cidade é muito ativa. Tem várias salas de concerto, teatros e museus. Não havendo tempo para meter o nariz em tudo, visitei apenas o Museu de Arte de Gotemburgo e foi uma excelente escolha. O Museu tem uma respeitável coleção, com particular presença de autores nórdicos que não são tão conhecidos, mas que são também muito interessantes.


O Museu de Arte de Gotemburgo
Runner, de Tony Cragg

A forma ideal de conhecer uma cidade é a pé, evidentemente. Mas, para quem não for tão corajoso, há um cartão de transporte para 3 dias, o Goteborg City Card, que permite usar os autocarros, carros elétricos e os barcos que fazem a ligação entre a cidade e as ilhas mais próximas. É uma boa opção, que fica muito económica. Imperdível, mesmo, é o passeio de barco pelos canais. Não está coberto pelo City Card, mas vale bem o preço. Cuidado ao passar debaixo de algumas pontes: são tão baixinhas que o passeio pode ser mesmo de perder a cabeça!



segunda-feira, 10 de abril de 2017

Livros e Viagens - Todos os Caminhos estão Abertos




Annemarie Schwarzenbach foi uma jovem, nascida na Suiça, que nos anos 30 fez uma coisa muito pouco comum: Meteu-se no carro que o pai lhe tinha oferecido e partiu, com uma amiga fotógrafa, para o Médio Oriente, passando mais de um ano no Afeganistão. Annemarie queria ser jornalista e escritora; e muitos dos textos que estão neste livro foram recolhidos de jornais e revistas onde ela publicou as suas impressões de viagem. 
Essas impressões são interessantes, desde logo por ser a visão de uma mulher ocidental, livre de muitos preconceitos e estereótipos, sobre uma sociedade onde as mulheres não tinham, já naquela altura, visibilidade no espaço público. Há mesmo um capítulo intitulado "As mulheres de Cabul".

Foi em Cabul, no hospital dos homens, que conheci essa mulher. (...) Trazia um "tchadri", esse espesso véu cinzento que cobre a cabeça como um gorro e cai em longas pregas por cima dos ombros e até aos pés, dissimulando completamente a mulher afegã. (...) Porque todas as afegãs se assemelham, tanto nos bazares, nas ruas poeirentas das cidades e das aldeias como nos jardins fechados das casas particulares. Sabia somente que os "tchadri" das judias são negros, que as afegãs os usam cinzentos ou azuis-claros e há decerto outras diferenças ainda: sob a orla do véu aparecem as pontas reviradas dos sapatos das camponesas, os tacões gastos das pobres, as sandálias de veludo bordado das mulheres ricas. Gostaríamos muito de ver um rosto, olhos vivos, uma bela boca, um sorriso, mas não podemos fazer mais do que assistir à passagem furtiva das grades que os escondem, sabendo,ao mesmo tempo, que estas criaturas amedrontadas e desamparadas não veem suficientemente bem para evitar os camelos vacilantes, os cavalos tilitantes de guizos dos "gadi", os homens que deambulam com jovial desenvoltura...

Mas a sua visão abarca muito mais e ela apaixona-se pelas largas paisagens varridas pelo vento e definidas pelas altas montanhas cobertas de neves eternas, assim como por um povo afável e hospitaleiro. Observa as manifestações de fé, nas mesquitas e nos túmulos dos santos sufis e come com os aldeãos. 

Deixámos Meched para trás. Esqueçamos a cidade, as suas ruas novas, traçadas a régua e esquadro, e as estreitas ruelas cobertas do bazar (...) Esqueçamos o azul imperecível da mesquita de Goharshad, o calor acabrunhante nos pátios que parecem ressoar numa harmonia de cores e de formas. Esqueçamos a obscuridade e o luxo dos espelhos no interior do santuário, os gemidos e as lágrimas de peregrinos descarnados, esses xiitas vindos de todos os cantos da Ásia e que sonharam, durante dezenas de anos, beijar as barras do sarcófago. Atravessaram o deserto e sofreram as piores fadigas para poderem pôr os seus pés descalços neste chão de mármore e verem abrir-se as catorze portas de prata e as duas portas de ouro. Ajoelham-se então entre soluços, agarram-se com gritos roucos de exaustão e de alegria histérica às barras de ferro do outro lado das quais, no escuro, repousa o imane, no meio de tapetes modernos, de turbantes, de oferendas votivas e de textos sagrados. Lá fora, a toda a volta da espaçosa mesquita, os artesãos - caldeireiros e ourives, correeiros e alfaiates - trabalham em lojas minúsculas que parecem gaiolas (...) Esqueçamos a cidade.

Por vezes, interroga-se sobre o que faz ali, tão longe de uma Europa já em guerra, cujos ecos ela vai apanhando. Quando regressa, pela India e o Canal do Suez, é já com estranheza que ela olha para esse mundo ocidentalizado e organizado por regras que não lhe dizem muito.

Estamos em novembro, a violência do verão asiático varreu o país e o eco da guerra distante não se detém na fronteira montanhosa do Afeganistão. Quanto mais escassas são as notícias, quanto mais rara e imprevisível se torna a chegada do correio vindo da Índia, mais cresce a inquietação...

Atormentada e apaixonada, Annemarie mostra-nos um mundo que já não existe, desfeito pelas sucessivas invasões e pelo fanatismo religioso. Mas fica um testemunho do que era essa região, hoje marcada apenas na nossa imaginação por imagens sombrias de palcos de guerra.