quarta-feira, 9 de setembro de 2020

A Ribeira Sacra


Acesso aos claustros do Mosteiro de Santo Estevo de Ribas de Sil


Em plena Galiza, longe das praias e dos grandes centros de peregrinação, encontra-se a Ribeira Sacra. O centro talvez seja a cidade de Monforte de Lemos, a meio caminho entre Lugo e Orense.


O brasão do Conde de Lemos, junto à fortaleza


Monforte de Lemos é hoje uma cidade pequena, mas os seus monumentos atestam a importância que tinha, pelo menos até ao século XVII. Cruzada pelo rio Cabe, tem uma pequena ponte a que chamam romana, como é habitual em relação a todas as pontes antigas, mas na realidade data da Idade Média. 


O parque, junto ao rio Cabe


Há um parque agradável ao longo do Cabe e, ao fundo do parque, encontramos a grande surpresa da cidade: o enorme edifício do Colégio de Nossa Senhora da Antiga, um complexo escolar construído no século XVI, que funcionou como Universidade até à expulsão dos Jesuítas de Espanha, em 1767. É um edifício belíssimo.que domina a grande praça fronteira, o Campo de la Compañia, e serve de cenário para os festivais que aí decorrem no verão.



Colégio de Nossa Senhora da Antiga


O belo edifício, conhecido como o Escorial galego, ainda hoje funciona como colégio e, para nós portugueses, apresenta uma curiosidade: o terramoto de Lisboa de 1755 também se fez sentir aqui, causando a queda das asas de vários anjos que flanqueavam a escadaria monumental.

Pode-se ter uma bela perspetiva de Monforte de Lemos a partir da Torre de Menagem da fortaleza, construída no século XII pelo Conde de Lemos. A fortaleza está transformada num Parador e até a igreja adjacente estava em processo de restauro, pelo que nos ficámos pelas vistas.

A Torre de Menagem


Para sul da cidade, o grande protagonista é o rio Sil. Este rio, afluente do rio Minho, escavou aqui o seu percurso entre altas paredes de pedra. Os panoramas são espetaculares e o chamado Canhão do Sil pode ser observado de vários miradouros, bem assinalados, como é o caso dos Balcones de Madrid, que valem bem a caminhada para lá chegar!




O rio Sil


À volta do rio, cresceram pequenos centros monásticos que dão o nome à região. São pérolas do que hoje se chama o românico galego. Alguns têm uma origem muito antiga, como São Pedro de Rocas, que data do século VI.

O maior e mais imponente dos mosteiros da Ribeira Sacra é Santo Estevo de Ribas de Sil. Inclui uma igreja com uma bela fachada barroca. O mosteiro está transformado num Parador, mas ainda é possível visitar os três claustros românicos, que preservam a lenda dos nove bispos que aqui procuraram refúgio, quando das invasões muçulmanas.

O Mosteiro de Santo Estevo de Ribas de Sil


Mas as jóias da Ribeira Sacra são os pequenos mosteiros, como Santa Cristina de Ribas de Sil, escondida entre castanheiros centenários. Este pode-se visitar e tem até um pequeno centro de interpretação. 


Santa Cristina de Ribas de Sil

A entrada para o claustro

As pinturas do altar-mor


O mosteiro de San Miguel de Eiré está fechado mas integra-se harmoniosamente numa aldeia com um modo de vida que aparenta ser tão antigo como o mosteiro.


O mosteiro de San Miguel de Eiré

Uma porta...

... e uma janela.

Toda esta região, de rios profundos e florestas densas, parece ainda pouco tocada pelo progresso e pelo turismo menos respeitoso. A natureza envolve-nos e transporta-nos para outras épocas e outras religiosidades. Quase esperamos encontrar, ao rodear uma árvore, um eremita ou uma mulher, dessas a que aqui chamam meigas, dotadas de poderes sobrenaturais e de saberes e mezinhas ancestrais.

Um recanto tranquilo no Pazo da Pena


Não apetece quebrar a magia do lugar com o alojamento num qualquer hotel moderno e incaracterístico. Em boa hora reservámos quartos no Pazo da Pena, em Manzaneda. Este alojamento rural é uma antiga casa senhorial, cabeça de uma grande propriedade onde se cultivava a vinha e o linho. Foi cuidadosamente restaurada e podemos ainda ver a oficina de tratamento do linho ou a velha cozinha onde se confecionavam os alimentos para os numerosos habitantes da casa. À volta, as árvores atestam, com a sua altura e envergadura, a antiguidade do lugar.

A velha cozinha do Pazo

Uma árvore centenária no parque


E apetece ficar ali. Ou voltar, uma e outra vez, a esta região tão diversa mas, afinal, tão próxima de nós.


E apetece ficar ali...

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A Rota dos Faróis da Costa da Morte




Junto ao farol do Cabo Prior

O nome Costa da Morte define um território que vai, aproximadamente, de Finisterra - ou Fisterra, como por aqui se chama - a Malpica de Bergantiños. Recorta a ponta noroeste da Península Ibérica, fazendo a passagem do Oceano Atlântico para o Mar do Norte, uma passagem temida através dos séculos e que lhe deu o nome.

A costa, junto ao Cabo Touriñan


O início é o Cabo Fisterra. Ali terminava realmente o Caminho de Santiago, ali era o Quilómetro Zero. Este último troço do Caminho, semeado de pequenas capelas e lugares sagrados, levava ao fim do mundo conhecido. Ali, os peregrinos sentavam-se a assistir ao pôr do sol no oceano, como nós próprios fizemos também, cruzando o misticismo do caminho já percorrido com os cultos místicos do Sol Invictus, vindos de tempos imemoriais.

O farol do Cabo Fisterra

Para norte, estende-se a Costa da Morte, cheia de cabos e espigões rochosos que avançam pelo mar dentro, como outras tantas armadilhas. Os faróis são dezenas, encavalitados nas pontas rochosas, numa tentativa, tantas vezes vã, de alertar as tripulações dos barcos que rodeavam a perigosa costa.

A costa, bela e perigosa

Mesmo em dias de calmaria, como os que ali apanhámos, percebemos que a costa é traiçoeira, eriçada de rochas inesperadas, por onde o mar se esgueira e rebenta. A atestá-lo estão as inúmeras cruzes erguidas nas falésias. Cada uma representa um naufrágio, ou uma vida perdida.


As cruzes, nos penhascos, recordam as vidas ali perdidas

Um dos naufrágios mais célebres foi o do navio britânico HMS Serpent, que naufragou perto do Cabo Villán no dia 10 de novembro de 1890. Dos quase 200 tripulantes do navio, apenas se salvaram três homens, que conseguiram chegar à costa e pedir socorro. Os outros foram cuspidos pelo mar, ao longo das semanas seguintes. 

O farol do Cabo Villán

Foram sendo enterrados no lugar hoje conhecido como Cemitério dos Ingleses, um largo quadrilátero de terreno pedregoso junto ao mar,cercado por um muro de pedra, com um cubículo, também de pedra, no centro. Na vida como na morte, mantém-se a diferenciação social: o comandante do navio e os oficiais foram inumados no cubículo central, enquanto os restantes marinheiros foram colocados no espaço exterior. Ainda por lá se vêem flores. Quem as põe ali?


O Cemitério dos Ingleses

Este cemitério faz parte da European Cemeteries Route criada pelo Institute of Cultural Routes of Europe.

Há outros naufrágios, mais imaginários e simbólicos, que são também celebrados ali, na Costa da Morte. É o que encontramos em Muxia.

No porto de Muxia

Muxia é uma pequena localidade costeira, com casinhas tradicionais e um belo artesanato, baseado nas rendas de bilros. Segundo a lenda, ali teria naufragado Nossa Senhora na sua fuga; os grandes pedaços de rocha seriam os restos despedaçados da sua barca.  Em memória desse naufrágio simbólico, foi erigida uma igreja junto ao mar, a Virgen de la Barca, um dos monumentos mais icónicos desta costa.

O Santuário da Virgen de la Barca

Pedaços de rocha ou pedaços do barco sagrado, arremessados à costa

Os faróis, como já disse, são muitos, e seriam precisos muitos dias para os visitarmos a todos, embora fosse um projeto interessante! Cada um tem as suas características e conta as suas histórias... Por exemplo, o farol da Illa Pancha foi construído numa ilha, ligada à terra firme por uma ponte. Hoje, está transformado num equipamento turístico. 

O farol da Illa Pancha

O Cabo Touriñan, com o seu farol, é um dos mais famosos. Duas vezes por ano, por altura dos equinócios, o Cabo Touriñan é o lugar onde o sol se põe mais tarde, na Europa Continental. Por isso lhe chamam o último sol.

O farol do Cabo Touriñan

O farol mais antigo é a Torre de Hércules, ainda erigido nos tempos romanos, embora remodelado ao longo dos séculos. É a imagem que mais recordo da cidade de La Coruña, isto é, já de saída da Costa da Morte.

A Torre de Hércules

O mais recente, o irmão mais novo desta grande família, é o Farol de Punta Frouxeira, inaugurado em 1992.   

O farol de Punta Frouxeira

Os faróis marcam a costa e a paisagem, recordando-nos, a cada volta do caminho, como a vida ali era difícil. O mar não era traiçoeiro apenas para os navios que passavam junto à costa, era igualmente traiçoeiro para os pescadores que nele tinham o seu ganha pão diário.

O porto de Muros

Junto ao farol de Laxe, há uma estátua intitulada A Espera, obra da escultora  Iris Rodriguez. Representa uma mulher com o filho ao colo, olhando o mar, numa espera eterna. Simboliza bem a valentia dos que afrontavam este mar da Costa da Morte para dali trazer o peixe e o marisco que garantiam a sobrevivência, mas simboliza também a força e a resiliência dos que ficavam à espera. Às vezes, para sempre.

A Espera




sábado, 25 de julho de 2020

Crónicas de uma viagem a Itália - Trento e o Lago de Garda


O lago de Garda junto a Malcesine

A cidade de Trento, nascida junto ao rio Adige, no norte da Itália, é um daqueles lugares fascinantes que parecem estar sempre a meio caminho entre duas realidades, suspensos entre duas culturas. Fez parte do Império Romano, mas também do Sacro Império Germânico e do Império Austro-Húngaro. E se, no final do século XX, a primeira língua já era o italiano, a segunda língua era o alemão.

Uma varanda, no Palazzo Pretorio
Foi sempre olhada como uma espécie de ponte entre o mundo germânico e o mundo latino. E tudo isto ainda se manifesta na cidade, de forma mais evidente ou mais subterrânea, na silhueta dos campanários, nos nomes das ruas e dos estabelecimentos comerciais...


Subida para o Palácio de Buonconsiglio
Junto ao rio, ergue-se um monumento a Dante, o grande poeta da língua italiana. Dizem que foi ali colocado para ajudar a “italianizar” a cidade que, a partir dali, sobe na direção do Palácio de Buonconsiglio, onde muitos combatentes foram mortos por não abdicarem da sua ligação a um desses dois mundos culturais, o alemão ou o latino.


Dante olha a cidade, do topo do seu pedestal

Uma das muitas figuras que ornam o monumento a Dante

O centro da cidade é a Piazza del Duomo, uma grande praça rodeada pela Catedral de São Vigilio, a Torre Cívica, o Museu Diocesano, os Palácios Pretorio e Balduini. No centro da praça, a Fonte de Neptuno proporciona um posto de observação privilegiado sobre aquele conjunto arquitetónico, díspar e irregular mas encantador.


A bela Piazza del Duomo, com a Fonte de Neptuno no centro

A Torre Civica, junto ao Museu Diocesano

As famosas "casas pintadas"

Foi ali, na Catedral de São Vigilio, que decorreu o célebre Concílio de Trento. Ali se procedeu ao debate sobre as ideias protestantes que incendiavam o norte da Europa e ali se procedeu à reforma da Igreja Católica, no século XVI. E não deixa de ser curioso que tenha partido daqui, deste local de cruzamento cultural, um movimento que  exaltou as emoções e mobilizou todos os sentidos humanos na experiência religiosa e que foi tão bem sintetizado na arte barroca.


A catedral de São Vigilio

É hora de jantar. Recomendaram-nos a Cervejaria Forsterbräu, como boa representante da gastronomia local. Ali reinam as cervejas artesanais. Comemos pastéis de queijo e polenta e strudel de maçã. Benvindos ao Tirol!

A entrada da Cervejaria Forsterbräu, um dos restaurantes mais antigos de Trento

A sudoeste da cidade de Trento estende-se o Lago de Garda. É o maior dos lagos alpinos italianos. A parte norte , enquadrada pelas montanhas, é bem mais bonita do que a parte sul do lago, embora aqui se situe uma das localidades mais icónicas, Sirmione.


O Lago de Garda...


... enquadrado pelas montanhas


Há barcos que percorrem o lago durante todo o dia, com intervalos regulares. Ligam Peschiera del Garda, no sul, a Riva del Garda, no topo norte do lago. Pelo caminho, vão parando em várias cidadezinhas das margens do lago, dando oportunidade para as apreciar. São todas pitorescas e deliciosas, Saló, Malcesine, Limone, Bardolino...




Malcesine...

Limone...

Riva del Garda

Aconselho vivamente este passeio pelo lago, é um dia muito bem passado! Nos locais de paragem, há restaurantes e esplanadas, com o cenário sempre idílico do lago.
Parámos para descansar e tomar uma bebida em Gargnano, antes de seguirmos para Brescia, a nossa etapa seguinte. Não me apetecia sair dali, sentia vontade de alugar um quarto num dos pequenos hotéis virados para o lago e ficar ali uma semana inteira, a encher-me de azul e de tranquilidade.


Paragem em Gargnano

Talvez um dia ali volte, quando aplacar esta minha sede de descoberta, quando o meu espírito de saltimbanco se aquietar.