sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Um recuo até Bizâncio

Santa Sofia vista da esplanada de Sultanhamet

Contantinopla, aliás Bizâncio, aliás Istambul... A História pesa nesta cidade.

No ano de 330, o imperador Constantino inaugurou uma nova capital para a parte oriental do Império Romano, num povoado antigo fundado por um colono grego de nome Byzas. Deu-lhe o seu próprio nome, Constantinopla, a cidade de Constantino, e uma identidade cristã. O chamado Império Romano do Oriente, ou Bizantino, iria durar mais 1000 anos do que o seu congénere do ocidente. O Império Bizantino afirmou-se então como a epítome do refinamento cultural e da riqueza, numa época em que o ocidente era marcado pela guerra, pelo empobrecimento e pela fragmentação. Tudo isto ainda se encontra na cidade.

A velhinha Haghia Sophia

A caminho do Grande Bazar, a chamada Coluna de Pompeu

Após a fundação, Constantino mandou erguer uma coluna com a sua estátua para colocar no Forum da cidade. Diz-se que o imperador teria mandado enterrar relíquias sagradas na base da coluna. Hoje não se dá muito por ela, sem estátua e sem nada que a realce, quando por aí passamos a caminho do Grande Bazar.

Rumeli, as antigas muralhas que envolvem a cidade, do lado europeu...

... e do lado asiático

As velhas muralhas bizantinas, que tanto custaram a transpor aos otomanos, ainda envolvem a parte antiga da cidade e são bem visíveis do Bósforo. O centro da cidade de Constantino era o Hipódromo, onde se disputavam as corridas de quadrigas que apaixonavam a população tal como hoje acontece com o futebol. Tinha lugar para 100 000 pessoas e era luxuosamente decorado. Ainda hoje aí está um obelisco trazido de Luxor, no Egito, e a chamada Coluna Serpentina, trazida do templo de Delfos, na Grécia. 

A Coluna Serpentina

O obelisco de Luxor

Também existia no estádio um magnífico conjunto de quatro cavalos em bronze, mas foram pilhados pelos cruzados, em 1204, e foram adornar a Igreja de de São Marcos, em Veneza. Mais recentemente, no início do século XX, foi aí colocada uma fonte a que chamam a Fonte Alemã, doada pelo Império Alemão ao Império Otomano, em memória da visita do Kaiser Guilherme II em 1898. Hoje, esta grande esplanada chama-se Sultanahmet e parece simplesmente um parque que liga a Mesquita Azul à Haghia Sophia, mas é muito mais do que isso.

 A Fonte Alemã

Junto das antigas muralhas situa-se a entrada para Haghia Sophia

A entrada da velha basílica

Haghia Sophia, a velha basílica de Santa Sofia ou Sagrada Sabedoria, é ainda hoje um dos ícones da cidade. Teria havido naquele local uma igreja mas esta que conhecemos foi mandada construir pelo imperador bizantino Justiniano, que a inaugurou em 537, isto é, no século VI. É necessário ter esta data em mente para apreciar devidamente a grandeza desta obra. Até à construção da basílica de S. Pedro do Vaticano, no século XVI, não havia nenhuma mais grandiosa ou com uma cúpula mais elevada. Foi transformada numa mesquita após a conquista otomana, em 1453, e depois num museu, em 1930, após a revolução que tornou a Turquia uma república laica. Aborrecem-me bastante as comparações com a Mesquita Azul: separam-nas mil anos e contextos históricos e religiosos totalmente diferentes.

O interior da basílica visto da galeria

Hoje voltou a ser uma mesquita. Sinais dos tempos... Tal como nos primeiros tempos da islamização as imagens cristãs foram tapadas com gesso (e destapadas em 1930), hoje estão cobertas com panos brancos, que mal as escondem. Não se pode entrar no piso térreo da mesquita, apenas nas galerias dantes reservadas às mulheres. Mas o que se vê basta para ficarmos esmagados pela sua grandiosidade e pela delicadeza decorativa.

Na galeria das mulheres


A dimensão da cúpula é impressionante, tanto na altura como no diâmetro. Nunca mais se tinha visto nada assim desde o Panteão de Roma, e não voltará a ver-se até à Basílica de S. Pedro. Vista do exterior, tem um perfil inconfundível, com as semicúpulas que a rodeiam e os minaretes que lhe foram entretanto acrescentados.

A maravilhosa cúpula de Santa Sofia

O interior é de uma imensa riqueza decorativa. Os quatro evangelistas dominam os quatro cantos do templo. As colunatas sucedem-se, delicadamente esculpidas e pintadas. Nas paredes das galerias os mosaicos mostram-nos a Virgem, Jesus Cristo, S. João Batista, mas também os imperadores e as imperatrizes bizantinos.

Colunas e capitéis delicadamente decorados


Cristo e a Virgem Maria, acompanhados pelos imperadores bizantinos, abençoam a cidade

No exterior, num dos átrios de acesso, há um mosaico extraordinário do século VI. Representa os dois imperadores, Constantino e Justiniano, prestando homenagem à Virgem Maria que segura o Menino Jesus ao colo. Constantino oferece-lhe a sua cidade, Justiniano oferece-lhe a sua basílica.

Outro impressionante vestígio dos tempos bizantinos é a Cisterna da Basílica, a que os turcos dão o nome de Palácio Submerso. O seu objetivo era bastante prosaico: garantir o fornecimento de água à cidade, através da construção daquele imenso reservatório. Tem um ar um pouco surreal, talvez pela dimensão, talvez pela semiobscuridade em que por ali deambulamos, no meio de centenas de colunas (precisamente 336...). Algumas das colunas foram retiradas de templos pagãos, como as que ostentam a cabeça da Medusa, o que contribui para adensar o ambiente misterioso. Já houve por ali passeios de barco. Agora apenas se pode andar pelos passadiços, em grupos de número rigorosamente controlado. Nada que lhe retire o seu aspeto surreal de palácio subaquático.

A Cisterna da Basílica

A famosa coluna com a cabeça da Medusa

Enquanto capital do Império Bizantino, Constantinopla (ou Bizâncio...) era também a sede do Rito Ortodoxo Grego. A igreja de S. Jorge, no bairro de Fener, continua a ser a sede mundial da Igreja Ortodoxa Grega. Quando aí estivemos, celebrava-se a Páscoa Ortodoxa e a Igreja estava cheia de gregos e búlgaros que participavam nas celebrações. Numa cidade marcada pelos minaretes das mesquitas e pelos cantos de chamada para a oração, a visita àquela igreja ortodoxa onde se celebrava tão livremente uma fé religiosa diferente não deixa de ser um sinal de tolerância. Espero que se mantenha...

A Mesquita Haghia Sophia iluminada para o Ramadão...

... enquanto na Igreja de S. Jorge se celebra a Páscoa Ortodoxa







quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Istambul, capital imperial e paraíso dos gatos

 

Istambul, vista do Bósforo

Istambul não é uma cidade qualquer. Não é mais um destino turístico que se adiciona a outros. Não lhe serve a adjetivação do costume, muito bonita, magnificente, deslumbrante, misteriosa, luminosa, embora todos esses adjetivos lhe assentem bem.

Vista sobre o Bósforo, da esplanada da mesquita de Suleimanye

O Bósforo, da janela do Palácio Topkapi

O que a torna uma cidade especial? Em primeiro lugar a sua situação geográfica. Equilibrada nas suaves colinas que rodeiam o estreito do Bósforo e o Mar de Mármara, cruzada por aquele estreito braço de mar a que chamam Corno de Ouro, dominando a passagem entre o Mar Negro e o Mar Mediterrâneo, Istambul estava fadada para o sucesso económico. Este contacto constante entre o azul do mar e o azul do céu também lhe traz uma luminosidade especial - que me fez lembrar Lisboa, ou não fosse eu uma alfacinha convicta.

Almoço na Ponte Galata

O Corno de Ouro visto do Café de Pierre Loti

Possui uma originalidade: a parte mais antiga está na Europa, mas já tem um pé na Ásia, do outro lado do estreito. Não me lembro de outra cidade que habite simultaneamente dois continentes. Esta característica faz de Istambul um cruzamento obrigatório entre o Oriente e o Ocidente, patente na sua história, na sua gastronomia e até no seu aeroporto, uma enorme plataforma de ligação entre a Europa e a Ásia. Um passeio de barco pelo Bósforo é uma das experiências imperdíveis na cidade. Conseguimos ver as duas margens do estreito, com o seu movimento, as suas casas apalaçadas, os seus jardins, até à ponte que une os dois continentes e as duas partes da cidade.

A ponte sobre o estreito do Bósforo, que liga a Europa e a Ásia

O lado europeu...

...e o lado asiático

Como se tudo isto não chegasse, não me recordo de outra cidade que tivesse sido uma orgulhosa capital de império durante mil e quinhentos anos. Constantinopla, Bizâncio, Istambul, não são três cidades, mas sim um mesmo espaço que se vai readaptando aos desígnios dos imperadores que aí habitam. Hoje, Istambul reflete essa história de glórias e riquezas. Ainda encontramos os vestígios da velha capital do Império Romano sob o impulso de Constantino, mas também aí estão os testemunhos da orgulhosa capital do Império Bizantino ou, o que é dizer o mesmo, do Império Romano do Oriente.


Ainda hoje aqui está situada a sede da Igreja Ortodoxa, que apanhámos
em plena celebração da Páscoa


No século XV a cidade já está muito fragilizada sob os ataques dos turcos e acaba por cair nas suas mãos em 1453, apenas para se tornar a luxuosa capital do Império Otomano. São dessa época mais recente os palácios e mesquitas mais esplendorosos. Hoje já não existe império otomano e a Istambul moderna organizou-se à volta da Praça Taksim, onde se presta homenagem aos heróis da criação da Turquia republicana e laica, e da Avenida Istiklal, que significa Avenida da Independência. Descemos a Avenida Istiklal. À exceção dos pequenos elétricos que percorrem a avenida, pouco mais há de interessante: o que encontramos são lojas de souvenirs ou lojas das grandes cadeias internacionais. Ninguém vai a outra cidade para encontrar os mesmos produtos que pode comprar em qualquer grande cidade ou mesmo num aeroporto.

Monumento à criação da Turquia moderna, na Praça Taksim

Um dos típicos elétricos que descem a Avenida Istiklal

Viramos então as costas à cidade moderna para mergulhar na cidade antiga e em tudo o que ela tem de único, as suas igrejas e mesquitas, os seus palácios, os seus bazares. É nos bazares que vale a pena perdermo-nos. É na sua confusão ruidosa e fascinante que ainda se pode encontrar o modo de vida típico da velha Istambul. Ou será que já nem aí? Os turistas são caçados e convencidos a comprar pratos e tapetes, jóias e tecidos. Não compro quase nada, não tenho jeito para negociar. Mas sempre posso comer uma baklava acabada de sair do forno, a desfazer-se na boca... uma experiência sensorial!

A entrada do Grande Bazar...

... e as belas galerias interiores

A entrada no Bazar Egípcio, ou das Especiarias

Seja como for, nas ruas mais secundárias do bazar, entre as lojas de pássaros, gaiolas e sementes, e os pequenos espaços que vendem café turco, ainda encontramos as pessoas da cidade que andam às compras ou simplesmente esperam pela chamada para a oração, para se dirigirem à mesquita.

No Bazar vende-se de tudo, desde especiarias a esponjas naturais


Um janízaro guarda o Bazar Egípcio...

Se sairmos das zonas mais turísticas, consegue-se ainda vislumbrar a velha Istambul nos bairros antigos, onde viviam as diversas comunidades étnicas que conviviam e partilhavam a cidade: nos bairros de Balat e Fener, por exemplo, viviam arménios, judeus sefarditas, europeus levantinos. Estas comunidades traziam a sua cultura e replicavam-na, na culinária como na arquitetura. É esta mistura que torna a cidade tão diversa e fascinante.

Uma rua em Fener

Os incêndios que ao longo de décadas atingiram Istambul terão sido os responsáveis pelo desaparecimento das típicas casas de madeira que, ainda no século XX, se alinhavam ao longo do Bósforo ou se apertavam pelas encostas acima. São esguias, de poucos andares, de madeira à vista ou pintada de cores discretas, com varandas de sacada a sobressair da fachada. Ainda se encontram, aqui e ali. Passámos por um belo conjunto ao longo da Rua dos Mártires de 16 de março, a caminho da mesquita Suleymaniye.

Casas típicas de madeira


Os bairros mais modernos sucedem-se aos mais tradicionais. Galatasaray, Fenerbahçe, Besiktas... não é estranho que conheçamos os nomes dos bairros de Istambul por causa das competições internacionais de futebol?

Restaurantes num dos bairros típicos de Istambul

Vida de gato...

Para além de tudo isto, recordo Istambul como a cidade dos gatos. Já sabia que havia muitos gatos em Istambul, mas não esperava tantos, em todo o lado, sempre com uma pose que reivindica o espaço como seu! Os gatos, tradicionalmente, eram acarinhados como símbolos de prosperidade. Protegiam os celeiros e os bens alimentares, defendendo-os dos ratos e outras pragas. Essa atitude mantém-se. Desde as entradas das lojas e casas até às ruas dos bazares, por todo o lado há recipientes com água e comida. Os gatos podem deambular com aquele ar fresco e confiante: sabem que em todo o lado haverá um lanche à espera! Estão gordinhos e bem tratados, com uma orelhinha cortada a indicar que houve um cuidado médico e uma esterilização. São de todas as cores, raças e temperamentos. Esperam ao lado do pescador ou à porta da peixaria, confiando que sempre haverá um peixinho para eles, antes de se deitarem a fazer a sesta. Que bela vida, a de um gato em Istambul!

Entre o Ocidente e o Oriente, entre a Europa e a Ásia... um farol no Mar de Mármara


segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Uma Irlanda dividida

 

Entrada em West Belfast

A pequena ilha da Irlanda foi, durante séculos, uma colónia da vizinha Grã-Bretanha. As marcas ficaram, na cultura, nos ressentimentos. Mesmo quando, depois de muitas tentativas de insurreição e de independência duramente reprimidas, os irlandeses conseguiram a sua independência, a jovem república viu-se obrigada a ceder perante os interesses britânicos e a abrir mão do seu nordeste, que se manteve dentro do Reino Unido. É o chamado Ulster, embora não corresponda exatamente ao antigo reino de Ulster.

O apelo à união de toda a Irlanda

Memorial a todos os resistentes ao domínio britânico

É estranho passar a fronteira entre a República da Irlanda e o Ulster britânico. O Brexit trouxe para ali a fronteira da própria União Europeia, mas quase não damos por ela. Passamos um pequeno rio, vindos de Donegal e, repentinamente, entramos em Strabane no meio de uma profusão de bandeiras britânicas e da Irlanda do Norte. Pronto, deixamos o conforto dos euros e dos quilómetros para entrar na confusão das libras e das milhas.

Vislumbres de Donegal



Mas esta fronteira é muito mais profunda do que o que se vê à primeira vista. A divisão política consubstanciou-se numa divisão religiosa e contaminou tudo. Os ingleses dominantes e senhores das terras eram protestantes enquanto os irlandeses, pobres, dominados e sem direitos, eram católicos. Hoje, de um modo que para nós é até difícil de compreender, essa divisão entre católicos e protestantes continua a marcar a vida da Irlanda do Norte. Em Belfast, os bairros católicos e protestantes estão separados por um muro, com portões que se fecham às 19 horas para só reabrirem às 7h do dia seguinte.

Um dos portões que é fechado durante a noite, separando os setores católico e protestante

Entrada para as muralhas de Derry

A cidade de Derry, a que os ingleses dão o nome de Londonderry, conta-nos a história. É útil começar por visitar o magnífico edifício da Câmara Municipal, implantado bem no centro da cidade, o Guild Hall. É a rainha Vitória que nos recebe, na sua estátua protocolar, mas a história começa bem antes e é contada nas várias salas do piso térreo. Exposições muito bem elaboradas levam-nos à conquista da Irlanda no século XVI e, depois, à instalação da Ulster Plantation, o sistema de exploração económica implantado pelos ingleses na ilha.

O Guild Hall

O Salão Solene...

... onde os vitrais contam a história do Ulster

Depois, há que percorrer as muralhas da cidade. Podem-se percorrer a pé e vamo-nos apercebendo pelos placards explicativos do crescimento da cidade e de quem eram estes colonos ingleses e escoceses que ali se foram entrincheirar. Esta relação entre cidadãos de primeira e cidadãos de segunda classe, os descendentes dos colonos e donos das terras e os rendeiros pobres, manteve-se até explodir nos “troubles” dos anos 60 do século XX.

Dentro das muralhas, os edifícios dos colonos ingleses e escoceses

A cidade de Derry vista das muralhas
Mural que recorda a luta dos irlandeses pelos direitos civis

Os “troubles” começaram em 1968, com marchas pelos direitos cívicos violentamente reprimidas pelo exército britânico. Está tudo no Bogside, o bairro católico da cidade. Murais e fotografias que recordam os momentos mais dramáticos dos confrontos, memoriais aos que morreram pelo sonho de uma Irlanda autónoma, em que todos tivessem os mesmos direitos. Direitos tão simples como o direito de voto, o direito de aceder a qualquer emprego ou de estudar em qualquer universidade. Direitos iguais para católicos e protestantes, em suma.

Alguns dos extraordinários murais do Bogside



Todo este conflito, tão sofrido, está ainda mais presente em Belfast. O Dave, que nos acompanhou na descoberta do centro da idade, avisou-nos: “Não se deixem enganar! Para entenderem Belfast, têm de ir aos bairros periféricos! Está tudo como em 1998, quando dos Acordos de Sexta-feira Santa!”

Entrada no bairro católico de Derry


Memorial aos mortos nos troubles

Pela nossa idade, o Dave viveu aqueles tempos terríveis e partilhou connosco algumas histórias. Levou-nos ao Hotel Europa, o único hotel aberto na cidade nos anos 70, que foi atacado à bomba 34 vezes pelo IRA. Católico e unionista, contou-nos que estava pronto para emigrar com a mulher e os quatro filhos, nas vésperas dos acordos de paz. Mas partilhou também connosco as suas esperanças de que a União de toda a Irlanda já não estivesse muito longínqua. Disse-nos, contente, que agora o chefe do governo eleito do Ulster era um católico. Não achou importante dizer se era socialista ou liberal ou qualquer outra característica; apenas o mais relevante, era católico.

Apelo à luta do IRA (Irish Republican Army)

Depois do almoço, rumámos a Falls Road, a avenida que separa os setores católicos dos setores protestantes. Rapidamente começamos a encontrar os memoriais que recordam os momentos mais violentos das lutas. Os murais glorificam os momentos de luta e os mártires que caíram mortos em atentados, ou morreram em greves de fome ou pela ação repressiva das tropas britânicas. Vêem-se muitas bandeiras da Palestina e desenhos de apoio ao povo palestiniano, numa clara identificação de lutas e aspirações.

Alguns dos murais mais icónicos de Belfast


Virando para a Northamberland Street, encontramos um dos portões que, à noite, separa o setor protestante do setor católico. De dia está aberto e avançamos por lá, cheios de curiosidade para ver se o ambiente é idêntico no setor protestante. Aqui, em Shankill Road, os murais exaltam a união dos britânicos e vêem-se desenhos e bandeiras de Israel. Uma senhora, no pequeno jardim da sua casa, chama-nos e faz queixas: “Passam aqui e cospem nos murais, acha bem?” Não, claro que não acho bem. Então, concorda com o muro e com o portão? “Sim, senão eles vinham aqui provocar-nos, com bandeiras!”

Murais num dos bairros protestantes de Belfast


Voltámos para o setor católico. Junto ao portão, o grande Mural da Paz parece entalado entre tantas mensagens de ódio e desconfiança.

O Mural da Paz

Continuámos a descer Falls Road e continuámos a descobrir os murais e os pequenos jardins memoriais. Junto a um ruidoso Sportsbar, parámos para consultar o nosso mapa e fomos abordados por dois homens que soubemos depois serem pai e filho. Quando falámos nos murais, a conversa soltou-se. O homem mais velho era mais ressentido. Afinal, o irmão tinha sido morto na esquina, mesmo ali em frente. Perguntámos se havia mistura das duas populações. Ele respondeu rápido: “Se eles cá vierem, mandamo-los para casa! Se nós lá formos, cortam-nos o pescoço!” Será? Sempre o nós e o eles, os dois lados de uma trincheira eterna.

Mural que recorda um dos episódios mais sangrentos dos troubles

Cartaz dos lealistas britânicos no setor protestante de Derry / Londonderry

Memorial aos mortos do IRA em Belfast

Aconselharam-nos a visitar um memorial que havia ao fim de uma das ruas laterais. De caminho, valia a pena visitar uma igreja católica que tinha uma cripta onde todos, católicos e protestantes, se refugiavam quando havia bombardeamentos alemães, na Segunda Guerra Mundial. Face a uma ameaça mais forte damos as mãos? Ou a trégua é apenas pontual?

A Igreja de Saint Clonard...

... com um memorial ao fim da rua

Não pudemos deixar de reparar que muitos dos que por ali estavam vestiam uma camisola verde e branca, do Celtic. Eram mesmo adeptos do Celtic de Glasgow? Uma equipa escocesa? Ah sim, responderam-nos, porque o Celtic de Glasgow foi fundado no século XIX por um padre católico irlandês. Nessa noite, havia uma grande festa do Celtic no Falls Park. Já no hotel, vimos imagens do festival, onde uma enorme multidão verde e branca entoava em conjunto as velhas canções irlandesas. Mais palavras para quê?

Identificação dos locais de conflito em Falls Road

Equipamento desportivo com motivos patrióticos

As feridas provocadas por este conflito continuam abertas e são muito evidentes em Belfast. Mas também se encontram as suas cicatrizes nas zonas rurais. Parámos junto ao memorial de Kingsmill, à beira de uma estrada estreita, no meio de campos e pastagens. Aí, recorda-se um episódio negro, quando em 1976 um grupo do IRA deteve uma carrinha de trabalhadores e chacinou os dez protestantes. Estas feridas continuam a sangrar, são memórias vivas de um conflito complexo, onde não existiram santos de um lado e pecadores do outro.

O memorial de Kingsmill

Mural de entrada em Sandy Row (Belfast), bairro protestante, sede da Liga de Orange

Hoje, o centro de Belfast está cheio de turistas que se alojam nos muitos hotéis disponíveis. Os habitantes bendizem o turismo que trouxe emprego e prosperidade. Os prédios crescem, cobertos de painéis de vidro que já não receiam as bombas do IRA. Porém, mais longe do centro, encontram-se muitas casas vazias e um certo ar de degradação que não se vê no resto da Irlanda. Vai levar tempo...

O Hotel Europa recuperado

O belíssimo edifício da Câmara Municipal de Belfast

Memorial aos mortos no naufrágio do Titanic

No porto de Belfast, à vista dos estaleiros onde foi construído o inafundável Titanic – que afinal se afundou – foi colocado o Big Fish, o Salmão da Sabedoria. Coberto de imagens rememorativas umas, dolorosas outras, foi “recheado” com objetos, jornais, imagens, do ano em que ali foi colocado. A ideia é abrir apenas daqui a cem anos. Será que nessa altura já existe uma Irlanda diferente, em paz consigo própria? E esses objetos poderão ir para um museu e ficarem definitivamente para a História?

O Salmão da Sabedoria

Pormenor do Big Fish