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Entrada em West Belfast |
A pequena ilha da Irlanda foi,
durante séculos, uma colónia da vizinha Grã-Bretanha. As marcas ficaram, na
cultura, nos ressentimentos. Mesmo quando, depois de muitas tentativas de
insurreição e de independência duramente reprimidas, os irlandeses conseguiram
a sua independência, a jovem república viu-se obrigada a ceder perante os
interesses britânicos e a abrir mão do seu nordeste, que se manteve dentro do
Reino Unido. É o chamado Ulster, embora não corresponda exatamente ao antigo
reino de Ulster.
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O apelo à união de toda a Irlanda |
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Memorial a todos os resistentes ao domínio britânico |
É estranho passar a fronteira entre a
República da Irlanda e o Ulster britânico. O Brexit trouxe para ali a fronteira
da própria União Europeia, mas quase não damos por ela. Passamos um pequeno
rio, vindos de Donegal e, repentinamente, entramos em Strabane no meio de uma
profusão de bandeiras britânicas e da Irlanda do Norte. Pronto, deixamos o
conforto dos euros e dos quilómetros para entrar na confusão das libras e das
milhas.
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Vislumbres de Donegal |
Mas esta fronteira é muito mais
profunda do que o que se vê à primeira vista. A divisão política
consubstanciou-se numa divisão religiosa e contaminou tudo. Os ingleses
dominantes e senhores das terras eram protestantes enquanto os irlandeses,
pobres, dominados e sem direitos, eram católicos. Hoje, de um modo que para nós
é até difícil de compreender, essa divisão entre católicos e protestantes
continua a marcar a vida da Irlanda do Norte. Em Belfast, os bairros católicos
e protestantes estão separados por um muro, com portões que se fecham às 19
horas para só reabrirem às 7h do dia seguinte.
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Um dos portões que é fechado durante a noite, separando os setores católico e protestante |
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Entrada para as muralhas de Derry |
A cidade de Derry, a que os ingleses
dão o nome de Londonderry, conta-nos a história. É útil começar por visitar o
magnífico edifício da Câmara Municipal, implantado bem no centro da cidade, o
Guild Hall. É a rainha Vitória que nos recebe, na sua estátua protocolar, mas a
história começa bem antes e é contada nas várias salas do piso térreo.
Exposições muito bem elaboradas levam-nos à conquista da Irlanda no século XVI
e, depois, à instalação da Ulster Plantation, o sistema de exploração económica
implantado pelos ingleses na ilha.
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O Guild Hall |
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O Salão Solene... |
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... onde os vitrais contam a história do Ulster |
Depois, há que percorrer as muralhas
da cidade. Podem-se percorrer a pé e vamo-nos apercebendo pelos placards
explicativos do crescimento da cidade e de quem eram estes colonos ingleses e
escoceses que ali se foram entrincheirar. Esta relação entre cidadãos de
primeira e cidadãos de segunda classe, os descendentes dos colonos e donos das
terras e os rendeiros pobres, manteve-se até explodir nos “troubles” dos anos
60 do século XX.
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Dentro das muralhas, os edifícios dos colonos ingleses e escoceses |
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A cidade de Derry vista das muralhas |
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Mural que recorda a luta dos irlandeses pelos direitos civis |
Os “troubles” começaram em 1968, com
marchas pelos direitos cívicos violentamente reprimidas pelo exército
britânico. Está tudo no Bogside, o bairro católico da cidade. Murais e
fotografias que recordam os momentos mais dramáticos dos confrontos, memoriais
aos que morreram pelo sonho de uma Irlanda autónoma, em que todos tivessem os
mesmos direitos. Direitos tão simples como o direito de voto, o direito de
aceder a qualquer emprego ou de estudar em qualquer universidade. Direitos
iguais para católicos e protestantes, em suma.
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Alguns dos extraordinários murais do Bogside |
Todo este conflito, tão sofrido, está
ainda mais presente em Belfast. O Dave, que nos acompanhou na descoberta do
centro da idade, avisou-nos: “Não se deixem enganar! Para entenderem Belfast,
têm de ir aos bairros periféricos! Está tudo como em 1998, quando dos Acordos
de Sexta-feira Santa!”
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Entrada no bairro católico de Derry |
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Memorial aos mortos nos troubles |
Pela nossa idade, o Dave viveu
aqueles tempos terríveis e partilhou connosco algumas histórias. Levou-nos ao
Hotel Europa, o único hotel aberto na cidade nos anos 70, que foi atacado à
bomba 34 vezes pelo IRA. Católico e unionista, contou-nos que estava pronto
para emigrar com a mulher e os quatro filhos, nas vésperas dos acordos de paz.
Mas partilhou também connosco as suas esperanças de que a União de toda a
Irlanda já não estivesse muito longínqua. Disse-nos, contente, que agora o
chefe do governo eleito do Ulster era um católico. Não achou importante dizer
se era socialista ou liberal ou qualquer outra característica; apenas o mais
relevante, era católico.
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Apelo à luta do IRA (Irish Republican Army) |
Depois do almoço, rumámos a Falls
Road, a avenida que separa os setores católicos dos setores protestantes.
Rapidamente começamos a encontrar os memoriais que recordam os momentos mais
violentos das lutas. Os murais glorificam os momentos de luta e os mártires que
caíram mortos em atentados, ou morreram em greves de fome ou pela ação
repressiva das tropas britânicas. Vêem-se muitas bandeiras da Palestina e
desenhos de apoio ao povo palestiniano, numa clara identificação de lutas e
aspirações.
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Alguns dos murais mais icónicos de Belfast |
Virando para a Northamberland Street,
encontramos um dos portões que, à noite, separa o setor protestante do setor
católico. De dia está aberto e avançamos por lá, cheios de curiosidade para ver
se o ambiente é idêntico no setor protestante. Aqui, em Shankill Road, os
murais exaltam a união dos britânicos e vêem-se desenhos e bandeiras de Israel.
Uma senhora, no pequeno jardim da sua casa, chama-nos e faz queixas: “Passam
aqui e cospem nos murais, acha bem?” Não, claro que não acho bem. Então,
concorda com o muro e com o portão? “Sim, senão eles vinham aqui provocar-nos,
com bandeiras!”
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Murais num dos bairros protestantes de Belfast |
Voltámos para o setor católico. Junto
ao portão, o grande Mural da Paz parece entalado entre tantas mensagens de ódio
e desconfiança.
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O Mural da Paz |
Continuámos a descer Falls Road e
continuámos a descobrir os murais e os pequenos jardins memoriais. Junto a um
ruidoso Sportsbar, parámos para consultar o nosso mapa e fomos abordados por
dois homens que soubemos depois serem pai e filho. Quando falámos nos murais, a
conversa soltou-se. O homem mais velho era mais ressentido. Afinal, o irmão
tinha sido morto na esquina, mesmo ali em frente. Perguntámos se havia mistura
das duas populações. Ele respondeu rápido: “Se eles cá vierem, mandamo-los para
casa! Se nós lá formos, cortam-nos o pescoço!” Será? Sempre o nós e o eles, os
dois lados de uma trincheira eterna.
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Mural que recorda um dos episódios mais sangrentos dos troubles |
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Cartaz dos lealistas britânicos no setor protestante de Derry / Londonderry |
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Memorial aos mortos do IRA em Belfast |
Aconselharam-nos a visitar um
memorial que havia ao fim de uma das ruas laterais. De caminho, valia a pena
visitar uma igreja católica que tinha uma cripta onde todos, católicos e
protestantes, se refugiavam quando havia bombardeamentos alemães, na Segunda
Guerra Mundial. Face a uma ameaça mais forte damos as mãos? Ou a trégua é
apenas pontual?
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A Igreja de Saint Clonard... |
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... com um memorial ao fim da rua |
Não pudemos deixar de reparar que
muitos dos que por ali estavam vestiam uma camisola verde e branca, do Celtic.
Eram mesmo adeptos do Celtic de Glasgow? Uma equipa escocesa? Ah sim,
responderam-nos, porque o Celtic de Glasgow foi fundado no século XIX por um
padre católico irlandês. Nessa noite, havia uma grande festa do Celtic no Falls
Park. Já no hotel, vimos imagens do festival, onde uma enorme multidão verde e
branca entoava em conjunto as velhas canções irlandesas. Mais palavras para
quê?
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Identificação dos locais de conflito em Falls Road |
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Equipamento desportivo com motivos patrióticos |
As feridas provocadas por este
conflito continuam abertas e são muito evidentes em Belfast. Mas também se
encontram as suas cicatrizes nas zonas rurais. Parámos junto ao memorial de
Kingsmill, à beira de uma estrada estreita, no meio de campos e pastagens. Aí,
recorda-se um episódio negro, quando em 1976 um grupo do IRA deteve uma
carrinha de trabalhadores e chacinou os dez protestantes. Estas feridas
continuam a sangrar, são memórias vivas de um conflito complexo, onde não
existiram santos de um lado e pecadores do outro.
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O memorial de Kingsmill |
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Mural de entrada em Sandy Row (Belfast), bairro protestante, sede da Liga de Orange |
Hoje, o centro de Belfast está cheio
de turistas que se alojam nos muitos hotéis disponíveis. Os habitantes bendizem
o turismo que trouxe emprego e prosperidade. Os prédios crescem, cobertos de
painéis de vidro que já não receiam as bombas do IRA. Porém, mais longe do
centro, encontram-se muitas casas vazias e um certo ar de degradação que não se
vê no resto da Irlanda. Vai levar tempo...
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O Hotel Europa recuperado |
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O belíssimo edifício da Câmara Municipal de Belfast |
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Memorial aos mortos no naufrágio do Titanic |
No porto de Belfast, à vista dos
estaleiros onde foi construído o inafundável Titanic – que afinal se afundou –
foi colocado o Big Fish, o Salmão da Sabedoria. Coberto de imagens
rememorativas umas, dolorosas outras, foi “recheado” com objetos, jornais, imagens,
do ano em que ali foi colocado. A ideia é abrir apenas daqui a cem anos. Será
que nessa altura já existe uma Irlanda diferente, em paz consigo própria? E
esses objetos poderão ir para um museu e ficarem definitivamente para a
História?
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O Salmão da Sabedoria |
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Pormenor do Big Fish |