quinta-feira, 28 de março de 2024

E as Pirâmides ali ao lado...

 

A visão, quase irreal, das Pirâmides de Ghiza

Quase nos esquecemos delas, no meio do bulício do Cairo! Mas elas lá estão, imponentes, silenciosas, misteriosas, confrontando-nos com a nossa pequenez e a nossa mortalidade!

A caminho da Grande Pirâmide

As fotografias são enganadoras. Mostram-nos as pirâmides de Ghiza de um ângulo tal que parecem estar no meio do deserto, num sítio isolado e longínquo. Mas não é assim, a cidade do Cairo expandiu-se até quase engolir estas montanhas de pedra, únicas remanescentes das antigas maravilhas do mundo.


Ao lado da cidade...

Mas elas lá continuam, indiferentes a nós, indiferentes ao tempo. Construídas no 3.º milénio a. C., no Império Antigo, foram concebidas para a imortalidade. O tamanho das pedras da base da Grande Pirâmide de Khufu (dantes chamavamos-lhe Keops...) é colossal e remete-nos para perguntas sem resposta, sobre a força, a crença, a enorme teimosia que ergueu estes montes organizados de pedra, durante anos a fio. Faz-nos refletir sobre os recursos que ali foram aplicados, o esforço dos milhares de homens que ali trabalharam, o sonho do rei que assim pensou garantir a imortalidade para si e para o seu povo.

Pedras gigantescas

Estes grandes túmulos já foram saqueados há muito tempo. Perderam-se as múmias e os tesouros que as acompanhavam. Não havia ainda relevos ou pinturas para nos orientarem a compreensão.

A Esfinge

A Grande Esfinge, com rosto humano e corpo de leão, continua ali ao lado, a proteger o que continua a ser diariamente violado por hordas de turistas! Como eu... Ao longo dos séculos saqueámos, esventrámos, profanámos o desejo de um retiro tranquilo no além. E, no entanto... ao virmos aqui, e evocarmos os seus nomes, e olharmos com respeito para as suas realizações, não estaremos de algum modo a garantir a sua imortalidade?

Esfinge, o que achas da evolução do mundo nestes últimos 3000 anos?

Para os antigos gregos, o Egito era uma terra de mistérios. Heródoto visitou as Pirâmides de Ghiza no século V a. C. e deixou-nos as suas impressões reverentes. É estranho pensar que eram tão antigas em relação a Heródoto como o grande historiador clássico o é, em relação a nós! Mas a admiração e reverência mantêm-se iguais.

Entrada para o sítio arqueológico de Saqqara

Perto do Cairo e das grandes pirâmides de Khufu, Khafré e Menkauré, localiza-se o complexo funerário de Djoser, em Saqqara. Anterior às pirâmides do planalto de Ghiza, aí o faraó Djoser e o seu arquiteto Imhotep criaram a primeira arquitetura monumental: descobriram que a pedra podia ser trabalhada e não apenas empilhada, como material de construção.

A grande pirâmide de degraus de Djoser...

...protegida por uma alta parede de pedra

Em todas estas pirâmides de pedra - material que as tornava eternas - o rei precisava de cumprir as mesmas tarefas que cumprira em vida, para assegurar a ordem cósmica estabelecida pelos deuses. Por isso, os grandes túmulos fornecem-nos inúmeras informações sobre o culto e vida quotidiana no Antigo Egito.

Ainda se podem visitar as ruínas dos templos e pátios circundantes

Mas nem só o faraó tinha direito à imortalidade. De todo o complexo de Saqqara, o túmulo que mais me emocionou foi o do vizir Mereruka, um governante importante da 6.ª dinastia. 

A imagem do vizir Mereruka

A entrada para o seu túmulo

É uma mastaba com trinta e três quartos e aposentos, de planta quase labiríntica. A decoração é elaborada e, para mim, quase comovente. Aí encontramos a figura do vizir mas também a da sua mulher, os dois unidos pelas mãos, numa demonstração de carinho com quase 5 000 anos. 

De mãos dadas...

As paredes estão cobertas de desenhos e baixos relevos delicados, onde podemos descobrir a vida no vale do Nilo, nessas épocas recuadas: os banquetes, as oferendas aos deuses, mas também as cenas do dia a dia. As pescarias no rio, os tufos de papiros, os patos que voam nas lagoas. A caça ao hipopótamo, as lutas entre os gigantes do rio, hipopótamos e crocodilos. 

Os delicados baixos relevos


E tudo isto esculpido e pintado com um rigor,uma delicadeza e um sentido de composição estética que nos deixam boquiabertos! E tudo isto numa época em que a Europa, coberta de florestas, desconhecia uma organização social mais complexa do que o clã, quanto mais este esmero de representação artística!

Cenas da vida nas margens do Nilo


quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Olhares sobre o Cairo

 

Uma esquina no Cairo antigo

O Cairo não é a capital mais antiga do Egito, mas é com certeza a mais marcante, afirmando-se desde os tempos de Saladino. E é precisamente a partir da Cidadela de Saladino que, dizem, se tem a melhor vista sobre a cidade. 

Os muros da Cidadela de Saladino

Situa-se na colina de Muqattan e aí viveram e reinaram várias gerações de califas e concubinas... É coroada pela grande mesquita de Muhamad Ali, construída no século XIX. Também lhe chamam Mesquita de Alabastro, já que esse é o revestimento das colunas e paredes que delimitam a sala principal.

A mesquita de Muhamad Ali...

... com os seus interiores totalmente forrados de alabastro

É um grande espaço aberto, iluminado por inúmeras lamparinas pendentes do teto, com o seu mihrab a indicar a direção de Meca. É bonita, sim, mas gostei mais do exterior do que do interior. O grande pátio é dominado por uma fonte de abluções ricamente trabalhada e por uma torre com um relógio, oferecida pelo rei francês Filipe Augusto quando da construção da mesquita e que nunca trabalhou...

O pátio e o relógio que nunca funcionou...

Dali, da cidadela, tenho o meu primeiro contacto real com o Cairo. A vista é privilegiada, a cidade estende-se sob os nossos olhos. Dizem que dali se conseguem ver as Pirâmides, mas isso só deve acontecer em dias muito claros e límpidos. Não era o caso. O que eu vi foi um aglomerado imenso de casas, todas da cor da areia do deserto, pontuadas pelos minaretes das mesquitas. Sobre toda a cidade pairava umanuvem baixa de calor e poluição. As elegantes torres da mesquita e universidade de Al-Azhar, fundada no século X e uma das mais importantes instituições de ensino do mundo islâmico, sobressaem do amontoado de casas. Ainda não sabia, mas iria visitá-la depois.

O Cairo visto da esplanada da Cidadela de Saladino

O Cairo é uma metrópole enorme, com cerca de 30 milhões de habitantes. Percebemos que estão a ser construídas infraestruturas para modernizar e agilizar a circulação. Percorremos e cruzamos rapidamente a cidade em vias rápidas e extensos viadutos. Para lá do centro, do Cairo histórico, estendem-se bairros desorganizados, de prédios inacabados que se ficaram pelo cimento e pelo tijolo. Os cabos de aço coroam anarquicamente todos os prédios, a par das antenas parabólicas. por vezes, as vias rápidas cruzam esses bairros e percebemos que cortaram os prédios por onde deu jeito. E as paredes interiores de quartos pintados de azul ou cor de rosa tornaram-se subitamente exteriores, contrastando com as paredes de tijolo.

Há bairros cortados pelas novas vias rápidas

Cruzamos também os cemitérios, a que me apetece mais chamar bairros dos mortos. Parecem enormes bairros de casinhas térreas encostadas umas às outras. Aí se colocam os defuntos, com em jazigos familiares. Têm um ar aprazível e arejado. Será que aí coabitam os vivos com os mortos? Garantem-me que não, agora já não é assim... Mas fica a dúvida... vi muita roupa estendida, a secar ao sol...

Vista do Cairo com cemitério...

Ao contrário de Alexandria, o Cairo é uma cidade para ver de perto. É necessário percorrer as ruelas da zona antiga para perceber o que a cidade tem de belo. O esplendor da cidade medieval, da dinastia fatímida, dos aiúbidas, aí está, desdobrando-se em torres elegantes, janelas e balcões finamente esculpidos, ornamentações inesperadas. 



Em algumas paredes, ainda se vêem os mucharabiehs de que falava Eça de Queiroz

A cada esquina, uma surpresa. A entrada para uma madrassa, escura e misteriosa. Uma mesquita, com um minarete elevando-se acima da linha desordenada dos telhados. Mil e um pormenores decorativos nas fachadas das casas ou nas entradas das ruas cobertas.




Pelo meio desta confusão magnífica, há lojas de tudo e mais alguma coisa, de cerâmicas a narguilés, com os produtos a estenderem-se pelos passeios. Algumas expõem os seus produtos com gosto, mas há outras em que a camada de pó acumulado parece ser anterior ao próprio Saladino.




Por todo o lado, muita gente. Mas não se acotovelam, não se empurram. Homens de T-shirt, mulheres de vestes escuras e compridas, muitas crianças, todos parecem ter um propósito definido, nem que seja estarem sentados num degrau à espera de qualquer coisa. As esplanadas apertadas das casas de chá enchem-se para o chá de menta.



A esplanada já está pronta...

O chá de menta

No extremo deste dédalo de ruas antigas e movimentadas, a velha mesquita e universidade de Al-Azhar chama por mim. As mulheres não entram pela porta principal da mesquita, mas podem entrar por uma porta lateral, mesmo não sendo muçulmanas. Apenas temos de cobrir a cabeça e todo o corpo, e descalçar os sapatos. Assim mo explica uma adolescente de sorriso aberto, logo após a proverbial pergunta "De onde és?", desta vez em francês. Encantada por se ver entendida e conseguir comunicar, dá-me todas as indicações necessárias. Depois da entrada, há uma sala à esquerda onde uma mulher me pode dar um traje comprido que me permita entrar no espaço sagrado. E lá vou eu, ataviada como um frade capuchinho...


A entrada da universidade

A sala principal é muito grande e está cheia de gente. Há miúdos que brincam e correm de um lado para o outro. Mas a maioria das pessoas está reunida em pequenos grupos, que me parecem de discussão e aprendizagem religiosa. Há vários grupos de mulheres, sentadas em volta de mesas; parecem ser grupos de discussão, todos encabeçados por um homem, evidentemente... Também há vários grupos de crianças, principalmente rapazinhos, sentados em círculo no chão, que recitam o Corão orientados por um catequista, chamemos-lhe assim... Como eu gostava de compreender as suas conversas, as suas perguntas e respostas!

Dentro da mesquita da universidade

Ninguém nos incomodou ou questionou. Quando quisemos, entregámos os nossos atavios e saímos. Foi com algum alívio que me vi restituída ao meu eu ocidental, de jeans e t-shirt.

Saindo das ruelas estreitas do Cairo antigo para as ruas largas e modernas da zona mais nova da cidade, o caos continua, mas agora à escala rodoviária. Não parece haver qualquer preocupação com as regras de trânsito. Os automóveis e as motoretas enchem as ruas, avançando temerariamente, sempre a buzinar. As ruas são uma cacofonia de acelarações e buzinadelas!


Os elegantes minaretes da Universidade de Al-Azhar

Pululam umas pequenas forgunetas brancas, que fazem serviço de transporte público. São às dezenas nos nós rodoviários, sem qualquer ordem ou sinalética. Eles lá se entendem, porque em lado nenhum há indicações de paragem ou destino. As motas também são às centenas, enfiando-se no meio do trânsito à custa de apitadelas. Podem levar dois, três, até quatro passageiros, todos sem capacete, pois claro! E, para ajudar à confusão, as mulheres andam sentadas de lado, à conta da decência e dos seus trajes compridos.

Será cómodo?

O nosso hotel situava-se junto à Praça Tahrir, no centro do Cairo moderno, mas, mesmo assim, senti um medo genuíno de atravessar as ruas. Alguém me disse: "Há que entrar na estrada! Se chegar ao outro lado, tudo bem, se não, foi a vontade de Alá!" Mas este fatalismo muçulmano não me conforta...

O velho Museu do Cairo, na Praça Tahrir

Também andámos à volta do hotel à procura de uma esplanada onde pudessemos relaxar um pouco e beber uma cerveja fresca. Que ideia tresloucada! Estamos num país muçulmano; podemos fumar o kif, mas não podemos beber cerveja!

Vida de gato...


segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Alexandria é uma cidade para ver ao longe...

 

Onde está o farol de Alexandria?

Pela manhã, quando se vê Alexandria ao longe, refletida no lago Mareótis, surge-nos como uma imagem quase feérica. Nada mais falso!...

Alexandria refletida nas águas do lago Mareótis

Quando penetramos no âmago da cidade, o que se revela é o lado caótico e degradado. Mesmo na bela “corniche”, a avenida marginal que corre ao lado do mar mediterrâneo, a maioria dos prédios mostra que os tempos do esplendor já lá vão há muito... Há ainda belas fachadas, mas todas mostram sinais de degradação. 


A corniche, a bela avenida marginal de Alexandria

Muitos edifícios parecem abandonados. Há pedaços de cimento a cair, bocados de janelas ou varandas que faltam e ninguém parece preocupado com reparações. Por toda a zona central da cidade, há espaços onde os edifícios caíram em ruínas e hoje estão apenas ocupados por entulho e lixo, muito lixo.



Pelo meio das ruínas e edifícios degradados, e talvez indiferentes a eles, há gente que se afadiga, a comprar e a vender, a sobreviver... Aqui, como no Cairo, tudo se compra e tudo se vende. Há muitas bancas de roupa, nova e usada. Há antiguidades egípcias duvidosas, papiros falsificados, amuletos de gesso. A todo o momento tentam meter-nos coisas nas mãos, ou à frente dos olhos. Se paramos a olhar, somos apanhados numa rede interminável que alterna pressão com negociação. Às vezes, compra-se qualquer coisa, só por cansaço... 
Um dos negócios que parece mais florescente é o de pedaços de automóveis. Sim, são só pedaços: volantes, jantes, pára-brisas... às vezes, são as metades dianteiras ou traseiras de um automóvel, inteirinhas! Com tempo e habilidade, consegue-se construir um automóvel inteiro com aqueles pedaços e muitos dos que circulam são com certeza resultados destas reconstruções.


Mas nem toda a gente se afadiga com qualquer coisa. Há os que, logo pela manhã, se recostam nos cafés, a bebericar o café turco mas, principalmente, a fumar os seus narguilés. Meia dúzia de cadeiras à volta de uma mesa ou um divã coberto com uma manta velha bastam para umas horas de tranquilo esquecimento do mundo.

A coluna de Pompeu

Alexandria foi fundada por Alexandre Magno, é um produto helenístico, por isso nada aqui se encontra do que se espera encontrar no Egito: os vestígios do esplendor faraónico. Mas teve os seus tempos de glória, quando chegou a ser a maior cidade do mundo antigo. Deles, pouco resta. Uma coluna de Pompeu, que não foi construída por Pompeu. Uma Agulha de Cleópatra, que afinal era um obelisco e nada tinha a ver com Cleópatra. Um farol magnífico, uma das Sete Maravilhas do mundo antigo, do qual só resta a base, integrada numa fortificação turca, a fortaleza de Qait Bey. 


A fortaleza de Qait Bey, ou o que resta do Farol de Alexandria

E a grande biblioteca, o maior centro de saber do mundo antigo, diligentemente destruída pelo tempo e pelos incêndios, com o auxílio dos fanáticos cristãos ou muçulmanos. 
Uma nova biblioteca ergue-se no lugar da antiga. É um edifício esplêndido, concebido e construído por um consórcio de arquitetos noruegueses. Assemelha-se a um disco voador, mas está repleta de símbolos do conhecimento. No largo fronteiro, uma velha estátua que dizem representar Demétrio de Falera, o homem que concebeu este grande centro de produção e armazenamento de conhecimento, nos tempos de Ptolomeu I.



Penetro na nova Biblioteca de Alexandria com reverência. O espaço é amplo e agradável, segmentado por áreas de conhecimento, tal como o concebeu Calímaco, o seu organizador. Muitos países contribuíram para o acervo da Biblioteca, no nosso caso foi a Fundação Calouste Gulbenkian que para ali levou os Camões e os Fernandos Pessoas, como seria de esperar.


Tento encontrar as obras portuguesas, mas não é tarefa fácil e distraio-me a observar os frequentadores. Há jovens espalhados pelas mesas, a ler ou simplesmente a manusear os telemóveis. Procuro aproximar-me, para ver o que estão a estudar. Há uma rapariga que me olha sorridente, com as mãos pousadas sobre um grande maço de apontamentos. Pergunto-lhe “What are you studying?” mas ela não compreende e mostra-me os apontamentos, em caligrafia árabe. Agora, sou eu que não compreendo. Na mesa ao lado, o sorriso rasgado de um rapaz, que vim a saber ser professor de árabe. “Where are you from?” A eterna pergunta, mil vezes ouvida e repetida, na tentativa de compreender um pouco o outro, integrando-o num ponto identificável no espaço. Nós somos assim, gostamos de conhecer os outros, dar de nós e aprender com o que nos rodeia. Assim os seres humanos como as civilizações...


Um local interessante na cidade de Alexandria são as catacumbas de Kom Chukafa. Datam dos tempos greco-romanos e aí os cristãos fizeram as suas cerimónias de culto e as suas inumações. Durante centenas de anos. Mas o passado e as suas formas de adoração teimam em permanecer, agregando símbolos, criando novos significados, prolongando o passado no presente. Ali nas catacumbas, continuam a aparecer as imagens dos velhos deuses egípcios, por vezes em sincretismos inesperados. É o caso de uma escultura do deus Sobek, com um saiote de legionário romano!




Almoçámos no restaurante San Giovanni, ao lado de uma movimentada praia na corniche. Os banhistas sentam-se em cadeiras de plástico brancas, de esplanada, debaixo de guarda-sóis amarelos. As crianças brincam, como em todo o lado, entre a areia e as ondas suaves do mar. As mulheres também vão à água, cobertas da cabeça aos pés. Elas conversam e riem, mas nada mais se consegue destrinçar. Tal como a cidade, elas também não são para ver de perto.


Uma praia na corniche