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Fome, de Edward Delaney, no St. Stephen's Park, em Dublin |
Parece-me que um dos fatores mais determinantes da identidade
irlandesa é a Grande Fome do século XIX. Como se chega lá? Desde o século
XVI que o domínio britânico se estabelece sobre a pequena ilha, discriminando a
população nativa, católica, face ao vizinho mais poderoso, protestante, e
criando um fosso cultural e religioso que ainda hoje é evidente. Um dos
direitos que lhes era negado era o direito a adquirir terras, mantendo assim a
população irlandesa num estado de submissão, pobreza e sobrevivência. O Act of
Union de 1800, apesar de integrar legalmente a Irlanda na Grã-Bretanha, não
muda significativamente a situação da maioria da população, composta por
rendeiros pobres que subsistiam graças ao cultivo extensivo da batata.
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Os belos vitrais da Guildhall de Londonderry contam toda a história da colonização da Irlanda |
Cerca de 1845, uma bactéria chamada Phytophtora infestans atacou
os campos de batata. A praga espalhou-se rapidamente e arruinou totalmente as
colheitas. Durante três anos, não houve batatas para alimentar a população. Os landlords
continuavam a exportar carnes e leite para Inglaterra mas, entretanto, mais
de um milhão de irlandeses morreu de fome e problemas ligados à desnutrição.
Por toda a Irlanda se encontram memoriais a esse período de fome e desespero.
Alguns são mais singelos, outros são verdadeiramente impactantes, como os que
se encontram nos cais de Dublin.
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O Memorial da Fome em Dublin
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Uma das figuras do Memorial da Fome |
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Os sapatos de bronze juntam ao cais lembram o caminho dos irlandeses que fugiam da fome |
O desespero empurrou aquelas famílias esfomeadas para as
cidades e daí para a emigração. Até ao final do século mais de três milhões
emigraram, principalmente para os Estados Unidos da América.
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Em Sligo, esta escultura chamada "Letter to America" (que se pode ler abaixo) é uma homenagem aos que emigraram para fugir da fome e da miséria |
Os navios que
vinham à Irlanda descarregar os seus produtos, principalmente madeiras, levavam
aqueles infelizes na viagem de retorno por um preço simbólico. Eram os chamados
“navios da fome”. No cais de Dublin está um desses navios, o Jeanie Johnston,
totalmente recuperado. Vale muito a pena fazer a visita guiada ao navio, que
nos transporta para aqueles tempos terríveis. O Jeanie Johnston original
transportou mais de 2500 irlandeses para os portos americanos e mostra bem como
era a vida a bordo. Apesar de tudo, foi chamado “navio milagre”, já que as
medidas sanitárias impostas pelo capitão e pelo médico de bordo permitiram a
sobrevivência da maioria dos passageiros.
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O Jeanie Johnston |
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No interior do navio há reconstituiçoes de cenas da viagem |
Muitos morriam durante a viagem. Os sobreviventes eram
descarregados nos portos americanos, no meio de muitos outros imigrantes em
busca de uma vida melhor. O EPIC, Museu da Emigração, mesmo frente à doca onde
está o navio, tenta dar uma visão panorâmica da diáspora irlandesa.
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A entrada do EPIC |
Embora
também apresente as histórias de pobreza e os mais conhecidos bandidos
irlandeses que inundaram os bairros de uma Nova Iorque em crescimento, foca-se
mais no contributo que todos esses emigrantes deram para a expansão da cultura
irlandesa pelo mundo. Da música ao desporto, da literatura à política, a
cultura irlandesa impôs-se, particularmente nos EUA. Hoje, o St. Patrick’s Day
é um festival que marca as cidades americanas e as inunda da cerveja, da música
e do verde da Irlanda. O EPIC é um museu muito dinâmico, muito interativo. Vale bem
uma visita.
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Parece que são muitos... |
Sabemos o resto da história. Os finais do século XIX e
inícios do século XX são marcados por revoltas, insurreição armada e pressão
política até que, finalmente, em 1923, a Irlanda consegue aceder à
independência. Não na totalidade, a Irlanda do Norte mantém-se integrada na
Grã-Bretanha, mas a maioria da ilha pode trilhar um caminho de autonomia, com
escolhos e dificuldades mas que deu os seus frutos.
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O belo texto da Declaração de Independência da Irlanda (hoje na Biblioteca do Trinity College)
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Memorial aos heróis da independência, em Cork |
Os heróis da luta pela independência estão em todo o lado,
têm estátuas nas avenidas e bustos nos parques.
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Cuchulain, o herói mítico da luta pela independência |
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Outros são heróis ou heroínas mais recentes... |
Os locais onde a luta foi mais
acesa, como o GPO – o grande edifício dos Correios na principal avenida de
Dublin – estão preservados e com centros de interpretação. Até nas lojas e nos
pubs há reproduções de fotos e cartazes antigos que lembram figuras ou momentos
marcantes da luta pela independência.
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O edifício do GPO, centro da insurreição de 1916 |
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Cópia de uma foto que representa a destruição do GPO em 1916 (esta foto decorava uma parede de um restaurante em Cashel) |
Mas o espírito não é melancólico nem depressivo. É a
preservação de uma memória importante. E, se houver momentos difíceis ou casos
que pareçam irresolúveis, não é nada que uma cerveja não cure, num dos alegres
e ruidosos pubs irlandeses.
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