A skyline de Ghent (ou Gand na versão francesa) não engana: estamos perante uma cidade antiga, próspera e cheia de encantos e histórias para contar a quem as quiser ouvir.
Situa-se na Flandres, na confluência dos rios Escalda e Lys, e aqui cresceu nos finais da Idade Média um riquíssimo centro de indústria têxtil. Juntamente com Bruges, dominava o comércio e a produção têxtil, numa rota que ligava a Inglaterra produtora de lã aos centros mercantis do norte da Itália, passando pela feiras da região da Champagne. Esta centralidade comercial e industrial explica o seu dinamismo demográfico: no século XIII, Ghent é a segunda maior cidade da Europa, logo a seguir a Paris.
Aqui mandavam os Condes da Flandres e o castelo condal é ainda hoje uma das principais atrações da cidade. É um dos poucos castelos com fosso que restam na Flandres, uma região tão castigada por guerras e destruições. Mesmo em frente, o Sint-Veerleplein é uma pequena praça cheia de esplanadas e animação. Um belo pórtico, encimado por um Neptuno com uma cauda de peixe, dava entrada para o mercado do peixe e a imponência da entrada diz alguma coisa sobre a importância da atividade piscatória e do seu comércio.
As penas eram aplicadas aqui, nesta pequena praça, junto ao pelourinho. Segundo rezam as histórias, havia aqui quatro postes de madeira onde os condenados eram amarrados. Um nobre medieval chamado Sire Gheleyn van Maldeghem violou os privilégios da cidade de Ghent e, como castigo, teve de substituir os postes de madeira por outros de pedra. A coluna que está no centro da praça, com um leão coroado, relembra esta história e é conhecida por Sire van Maldeghem.
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Sire van Maldeghem |
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Há edifícios com muitas histórias para contar... |
Uma das principais praças da cidade é a Praça do Mercado, o local das transações comerciais. Hoje, os edifícios do século XVIII estão transformados em restaurantes e cafés. No centro da praça, uma estátua de Jacob van Artevelde lembra o mestre cervejeiro do século XIV que se tornou um líder da região flamenga durante a Guerra dos Cem Anos.
Os canais que cruzam a cidade são ainda testemunhos deste movimento comercial. Nas margens do rio Lys, no bairro de Graslei, erguem-se os belos edifícios das guildas, na época casas comerciais e armazéns.
Passando uma das pontes sobre o Lys, junto à igreja de São Miguel, entramos no centro histórico da cidade, hoje quase completamente pedonal e muito agradável de percorrer.
Entre a Igreja de São Miguel e a Catedral de São Bavo, multiplicam-se os edifícios civis e administrativos que atestam bem a importância e riqueza da cidade de Ghent.
Bem no centro da cidade ergue-se a Torre Belfort, a mais alta da Bélgica, ainda mais alta do que a de Bruges (que, porém, me pareceu maior, talvez pela sua localização, em plena praça principal). Além de ser uma torre de vigia, também simbolizava a riqueza e independência da cidade de Ghent, já que era ali que se guardavam os documentos onde estavam registados os seus privilégios. No topo da torre, um dragão olhava pela cidade. Tornou-se o seu símbolo e a sua mascote.
A igreja principal de Ghent é a catedral de São Bavo (ou Sint Baffs, em flamengo), consagrada no século X, mas com muitas alterações e acrescentos pelo caminho. O exterior não é extraordinário, mas o interior alberga algumas obras de arte inestimáveis, como o Retábulo do Cordeiro Místico, de Van Eyck, e pinturas de Rubens. Ainda entrei na catedral, mas a missa ía começar dali a dez minutos e já não era permitido passar da entrada. Mas... mas... estou aqui tão perto e não vejo o Retábulo de Van Eyck? Minha senhora, está em restauro desde maio de 2023 e foi substituído por uma fotografia de alta resolução. Saio da catedral menos frustrada. Parece que tenho de regressar a Ghent quando terminar o restauro...
Ao passear pelas margens do rio Lys, vem-me à memória outro facto histórico. Foi perto das margens deste rio, embora já no lado francês, que os portugueses sofreram uma derrota cruel frente aos alemães, no dia 9 de abril de 1918. A batalha de La Lys, como ficou conhecida, marcou da pior maneira a participação portuguesa na 1.ª Guerra Mundial. Assim é a História. No mesmo local, cruzam-se boas e más memórias, de beleza e de crueldade, de sol e de lama. É o cortejo do passado. Mas neste momento, no presente, vou sentar-me numa destas esplanadas e apreciar a quietude do rio.