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Mesquita Bibi-Khanum |
Samarcanda...
Só dizer o nome, devagar, saboreando as sílabas, é o suficiente para evocarmos
toda a magia da Rota da Seda. No nosso espírito, passam caravanas de camelos,
carregados dos produtos mais ricos e apetecidos de todos os cantos da Terra
conhecida. Evocamos a sua caminhada vagarosa, entre desertos, montanhas, vales
férteis, em viagens que chegavam a durar três anos. Ouvimos o ruído dos
bazares, cheio de línguas diferentes. Sentimos os cheiros, percebemos as cores
brilhantes. Para nós, Samarcanda resume toda a mística e exotismo do Oriente.
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Banca de frutos secos no Mercado Siab |
É claro que
eu sei que a ideia de Oriente é uma construção do Ocidente. O que para nós é
exótico, constitui o modo de vida desses povos. Mas, seja como for, construiu o
imaginário ocidental e é em busca desse imaginário que eu vou, sem esquecer a
realidade presente, na qual todos nos movimentamos.
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Os minaretes da Mesquita Bibi Khanum |
Samarcanda é
das cidades mais antigas da Ásia Central, habitada continuamente desde o século
VIII ou VII a.C. A sua prosperidade baseia-se na sua posição geográfica
privilegiada, a meio caminho entre a China e o Mediterrâneo. Os primeiros povos
a explorarem as possibilidades comerciais dessa localização, foram os
Sogdianos. Os crânios alongados destas populações, encontrados nas escavações
arqueológicas, alimentaram todo o tipo de especulações sensacionalistas, até a
investigação histórica ter trazido menos espetáculo e mais sensatez à questão.
Os crânios, com a sua forma peculiar, aí estão, no Museu Arquelógico de Samarcanda.
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Crânios de Sogdianos no Museu Afrossiab |
A visita a
Samarcanda pode bem começar por este pequeno museu arqueológico, chamado Museu
Afrossiab, do nome antigo de Samarcanda. A jóia deste museu é um fresco do
século VII que ocupa as quatro paredes de uma sala e reconstitui a chegada e o
encontro de cavaleiros e mercadores de regiões longínquas, como a China. O que
resta do fresco atesta a antiguidade das relações comerciais que aqui se
estabeleceram.
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Antigos estudiosos e mercadores na fachada do Museu Arqueológico de Samarcanda |
Outro local
interessante e imperdível é o mausoléu do Profeta Daniel. É interessante porque
a própria existência desta personagem bíblica é questionada e nada mais nada
menos do que seis cidades reclamam para si a honra de possuírem o túmulo do
profeta. Mas é imperdível pela próprias características do túmulo. A urna que
supostamente contém os seus restos mortais é enorme, talvez com uns cinco ou
seis metros. A razão dada é que os ossos do profeta crescem continuamente, uns
centímetros por ano. Outra explicação, talvez com mais fundamento, defende que
a urna tem aquele tamanho descomunal para dissuadir eventuais ladrões de
túmulos. Seja como for, o mausoléu é um local de peregrinação importante, tanto
para cristãos como para muçulmanos.
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O mausoléu de Daniel, na montanha |
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A imensa urna do profeta Daniel |
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A sala de acolhimento dos peregrinos |
Os pontos
mais monumentais na cidade de Samarcanda pertencem ao período de domínio de
Timur, ou Tamerlão, como o conhecemos aqui na Europa. Depois da destruição
generalizada que as invasões de Gengis-Khan tinham provocado, Tamerlão
estabelece um novo império e Samarcanda é a sua capital. Conhecido pelas suas
ações cruéis e impiedosas, parece ter orientado para o embelezamento da cidade
tudo o que em si houvesse de sensível e artístico. O esplendor da Samarcanda da
dinastia Timúrida é insuperável e ainda hoje nos deixa de respiração suspensa.
Ficará para o próximo post...
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No complexo Shaki Zinda, a modernidade cruza-se com o esplendor timúrida |
Não quero,
todavia, deixar de mencionar aqui uma obra surpreendente, pelo menos para o
visitante europeu: o observatório astronómico de Ulugh-Bek.
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Estátua de Ulugh Bek, junto ao observatório |
Ulugh-Bek era
neto de Tamerlão e chegou a governar este território no século XV. No entanto,
a sua paixão era a matemática e a astronomia. Construiu uma madrassa, onde
também ensinou, e um enorme observatório astronómico, em Samarcanda. Aí,
determinou a posição de centenas de estrelas, corrigindo as tabelas árabes e
fazendo observações originais e muito avançadas no seu tempo. O que resta do
observatório é, ainda hoje, impressionante, e um pequeno centro interpretativo
ajuda-nos a compreender melhor a sua obra. O que eu não compreendo é que o nome
de Ulugh-Bek não figure nos nossos manuais de História da Ciência, ao lado de
Copérnico e Galileu. Os contemporâneos também não o valorizaram muito: fosse
pela sua inabilidade política, fosse pelo seu insuficiente fervor religioso, foi mandado matar pelo seu próprio filho.Valeu-lhe um
astrónomo alemão, que no século XIX batizou com o seu nome uma cratera na Lua!
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Reconstituição do observatório (maquete no centro interpretativo) |
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Limpezas matinais no observatório... |
Próximo da
mesquita Bibi Khanum, mandada construir pela esposa de Tamerlão, situa-se ainda
hoje o mercado Siab, o bazar mais importante da cidade. Fomos visitá-lo, na
ideia de comprar uma espécie de torrão doce, típico da região. É um mercado
enorme, onde se vende de tudo, desde chapéus a especiarias. Lá encontramos o
torrão, que compramos, assim como outras curiosidades, como melão seco
entrançado. Aí encontrei também a simpatia e gentileza do povo uzbeque.
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Banca de venda de chapéus, no mercado Siab |
Nesse
mercado, três rapariguinhas vieram ter comigo, ansiosas por mostrarem o seu
domínio da língua inglesa, ainda pouco vulgar no país. Conversámos um pouco,
tirámos fotografias... Podiam ser minhas alunas! Em
Samarcanda, fui surpreendida pela simpatia e quase ingenuidade dos uzbeques,
que nos interpelavam, por vezes apenas para tirarem uma fotografia. Falei com
mulheres uzbeques, mesmo quando não partilhávamos nenhuma língua, comunicando
apenas pelo sorriso e pelo coração.
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Entre mulheres... |
Hoje,
lembro-me dessas mulheres e das rapariguinhas no mercado e, nestes tempos
conturbados pelo fundamentalismo, desejo-lhes muita força e um mundo um pouco
menos hostil.